sábado, 12 de maio de 2012

Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve - Ricardo Reis



Orfeu era o mais talentoso de todos os músicos. Orfeu era filho da musa Calíope e do deus Apolo. Este presenteou o filho com uma lira. Quando Orfeu a tocava, os pássaros paravam para escutar, os animais selvagens perdiam o medo e as árvores curvavam-se para pegar os sons que o vento trazia.
Orfeu apaixonou-se pela bela Eurídice e casaram-se. Ela era tão bonita que Aristeu se apaixonou por ela. Ela recusa  Aristeu, mas este persegue-a continuamente. Durante a fuga, Eurídice tropeça numa serpente. A serpente morde-a e a jovem morre.
Desesperado e sofrendo muito, Orfeu foi até ao mundo dos mortos, levando a sua lira para resgatar Eurídice. A canção emocionada que entoa convence Caronte (o barqueiro) a levá-lo e, em seguida, faz adormecer Cérbero, o cão de três cabeças que vigia a entrada do mundo inferior.
Quando Orfeu chega perante Hades, o deus do submundo fica muito irritado por ver que um vivo conseguira penetrar no mundo dos mortos, mas a música de Orfeu comove-o. Perséfone, que estava com Hades, convence-o a satisfazer o pedido de Orfeu.
Hades concorda, mas com uma condição: Eurídice pode sair, seguindo Orfeu, mas ele só deve olhar para ela novamente quando estiverem à luz do sol.
Orfeu parte pelo caminho íngreme, tocando músicas de alegria e celebração, a fim de guiar a sombra de Eurídice de volta à vida. Ele não olha nunca para trás. Mas, quando atinge a luz do sol, vira-se, procurando certificar-se de que Eurídice o segue. Ele vê-a por um instante, perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez. Mas, enquanto ele a olha, ela transforma-se de novo num fantasma, o seu grito final de amor e pena não é mais do que um suspiro na brisa que sai do mundo dos mortos. Ele perde-a para sempre.


Atrás não torna, nem, como Orfeu, volve
Sua face, Saturno.
Sua severa fronte reconhece
Só o lugar do futuro.
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.


Escrevi o texto acima sobre o mito de Orfeu, pois este é referido neste poema nos dois primeiros versos. Tem a ver com o facto de não se poder voltar atrás, ou seja, a morte é algo definitivo e nada nem ninguém pode alterar isso. Saturno comanda o tempo das vidas humanas, quando o tempo de vida termina, segundo a lenda, Saturno corta o fio que nos prende à vida e nós morremos. A amada de Orfeu tinha morrido e tudo apontava para que ele a conseguisse trazer de volta ao mundo dos vivos. Isso não aconteceu, porque tal não era possível, a morte é a única certeza que temos em relação ao nosso futuro e é isso que nos pretende dizer o sujeito poético nos dois primeiros versos. Podemos perguntar em relação a Orfeu: Será que se ele esperasse mais um pouco antes de se virar para ver a sua amada, ela teria voltado à vida? Não teria, pois o destino não permite um retrocesso. E o sujeito poético, nos dois primeiros versos, afirma, dirigindo-se a Saturno (apóstrofe) que não há retorno, nem mesmo se Orfeu não tivesse voltado a face para ver se a sua amada o seguia. Orfeu, mesmo que não tivesse voltado a face para trás, não dominaria a morte, esta é definitiva, pois o Homem nada pode fazer para alterar o seu destino ou o destino dos outros (da amada de Orfeu). O didactismo da poesia de Ricardo Reis é, aliás, motivado por esta constatação. Os próprios deuses estão submetidos a uma vontade superior – o fado (destino). O Homem é regido pelas regras cosmogónicas universais e o apelo de Ricardo Reis surge no sentido de promover a consciência deste facto, o que implica uma desvalorização da individualidade e da ideia de que o Homem pode controlar a sua existência, ao contrário dos animais irracionais ou das árvores e das pedras. É a constatação desta verdade que leva este heterónimo a defender a ataraxia, a inércia como a única possibilidade perante o reconhecimento da inevitabilidade do destino e da morte.
Ricardo Reis foi o que melhor traduziu a evidência da tragédia humana: Existir é nada ter, é nada poder. Ele não acredita na obtenção da verdade e a sua única certeza é que não fugiremos ao nosso fado, ao nosso destino, que culminará, inevitavelmente, na morte: “Sua severa fronte reconhece / Só o lugar do futuro.”: Quando Orfeu volveu a sua fronte, reconheceu “o lugar do futuro”, a morte (eufemismo e perífrase). Então, o poeta propõe a anulação da vontade, a aceitação passiva de todas as coisas, a recusa da emoção do prazer exagerado, pois o homem é um ser que está preso na sua própria condição: “Não temos mais decerto que o instante / Em que o pensamos certo.” A renúncia é a única coisa que nos resta perante uma vontade divina que nos transcende, perante o Tempo (Saturno), que devora os seus próprios filhos. Assim, Ricardo Reis propõe o gozo do momento, o carpe diem, pois o futuro é incógnito e a vida efémera. O poeta prefere viver numa áurea mediocritas, com a tranquilidade que se adquire através da recusa dos prazeres violentos e das emoções fortes, renuncia a qualquer acção inútil e evita a dor (lição epicurista). Para Ricardo Reis, a liberdade e a felicidade são ilusórias, assim há que perseguir “uma calma qualquer”:  “Não o pensemos, pois, mas o façamos / Certo sem pensamento.”


Tom coloquial – diálogo permanente

Apóstrofe: o poeta dirige-se a Saturno.

Hipérbato nos dois primeiros versos.

Adjectivo anteposto ao nome “severa fronte”

Personificação: “Sua severa fronte reconhece”

Eufemismo e perífrase: “o lugar do futuro”

Anáfora:
Não temos mais decerto que o instante
Em que o pensamos certo.
Não o pensemos, pois, mas o façamos
Certo sem pensamento.”

Anástrofes

Repetição de sons

Predominância de sons nasais e fechados

Uso do imperativo como manifestação de atitude filosófica: “Não o pensemos, pois, mas o façamos / Certo sem pensamento.”


1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

As tuas análises são impressionantes.
Gostei muito.
Beijo grande, querida Mena.

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