Estudei, além da lírica de Mário de Sá-Carneiro, a Confissão de Lúcio. Lembro-me de ter lido e relido. E fiquei apaixonada pela escrita de Sá-Carneiro!
A Confissão de Lúcio é narrada na primeira pessoa.
A narrativa começa do fim para o início. Na primeira
página, o narrador revela-nos toda a desilusão que tomou conta da sua vida,
depois dos acontecimentos que vai narrar, chegando até a considerar "uma
coisa sorridente" os dez anos que
passara na prisão por um crime que não cometera. Há em toda a narrativa uma
certa ironia que advém do próprio narrador. É como se ele estivesse sempre a
analisar o passado com os olhos do presente, para imprimir mais veracidade aos
factos que vai narrando, porém, a sua tentativa é malograda, uma vez que a
ironia assume apenas um tom de riso profilático e cai completamente por terra
no final, pois o narrador nada mais é do que uma vítima confessa.
As várias funções exercidas pelo narrador/personagem,
Lúcio, na história - ele é ao mesmo tempo personagem, narrador e receptor de
outras obras - indicam a ambiguidade, inerente à linguagem, em que o
significante desliza constantemente sob o significado, tornando impossível o
estabelecimento de qualquer sentido definitivo. E também que o oposto (ou o
complemento?) da criação é a destruição: Lúcio destrói no fogo a sua peça Brasas, Ricardo mata Marta, sua criação,
o final da obra da americana coincide com a sua morte.
O objectivo da narrativa é deixar o
leitor em constante dúvida (o relato é real ou imaginário?).
Ele intensifica o caráter documental de sua obra: a
novela é apresentada ora como confissão de factos consumados ora como um diário
íntimo.
“Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer
uma exposição clara de factos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau
caminho - parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão
resultará - estou certo - a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos
lúcida.
(...) E são apenas factos que relatarei. Desses factos,
quem quiser, tire as conclusões. Por mim declaro que nunca o experimentei.
Endoideceria, seguramente.
(...)
Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade -
mesmo quando ela é inverosímil.
(A Confissão de Lúcio - Prólogo)
A personagem principal desta narrativa cumpre um
destino absurdo que não é possível explicar pela lógica comum: deixa-se prender
e condenar por um crime que não cometeu e que afinal não existiu.
Personagens
É o triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e
Marta, o cerne fundamental que levará à desilusão do narrador no final da
narrativa.
Ricardo -
o protagonista dos factos narrados. Trata-se de um poeta que, antes de ser
apresentado a Lúcio, é mencionado por várias personagens. Sua marca principal é
a incoerência: seu maior problema é que se sente totalmente estranho à vida
normal, ao mesmo tempo que sente uma irresistível atracção por ela.
Lúcio Vaz - narrador-personagem,
jovem escritor português, é a duplicação do eu de Ricardo, ou seja, o seu
outro, o grande conflito que marca toda a obra de Sá-Carneiro.
Marta -
uma mulher belíssima, que aparece envolvida sempre em mistério durante toda a
narrativa. É esposa de Ricardo, porém Lúcio apaixona-se por ela. Os dois têm
uma relação extra-conjugal. A Lúcio parece-lhe que a sua relação com Marta é
óbvia demais. Ele tem quase a certeza de que Ricardo sabe da sua ligação, e
acha estranho que este não se manifeste. Marta, entretanto, deixa de
frequentar a casa de Lúcio e passa a encontrar-se com Sérgio Warginsky, outro visitante
da casa de Ricardo, o que deixa Lúcio horrorizado: Marta mantém uma relação com três homens.
Acção
Num primeiro momento, a história desenrola-se em
Paris, em 1895. O narrador, Lúcio, fala do meio artístico e destaca-se nessa
narração a figura de Gervásio Vila Nova: escultor, dono de uma conversa
envolvente, embora fosse algo “disperso, quebrado, ardido”. Destaca-se ainda,
nesse momento, a admiração que vai desenvolver por uma misteriosa americana,
mulher rica e linda: “Criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada
- e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante.” Por ela fica a
saber da chegada de Ricardo Loureiro, poeta, cuja obra era muito admirada.
Numa festa promovida por Gervásio, Lúcio é
apresentado a Ricardo. Ficam amigos.
As conversas com Ricardo pareciam atingir a alma de
Lúcio. Desta amizade nasce uma relação que pode ser representada como sendo uma
projecção de Lúcio sobre o outro, Ricardo. Pressente-se um tom de homossexualidade:
“Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia
ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de
sexo.”
Ricardo vai para Lisboa, separam-se por um ano,
trocam cinco cartas durante esse período. Em Dezembro de 1897, Ricardo retorna
a Paris: “As suas feições haviam-se amenizado, acetinado - feminizado, eis a
verdade.” Lúcio sabia, no entanto, que Ricardo havia casado. Num jantar,
Lúcio é apresentado a Marta: “Era uma linda mulher loira, muito loira, alta,
escultural (....) Cheguei a ter inveja de meu amigo.”
Os três tornaram-se amigos inseparáveis. Participavam
em reuniões de amigos intelectuais e artistas, em que se destacava a figura
de Sérgio Warginsky, músico russo, que, no entanto, cria uma impressão
negativa, quase de ódio, em Lúcio.
Envolvido com a sua produção literária, por vezes,
Ricardo deixava Lúcio a sós com Marta. Entre situações, às vezes,
constrangedoras que beiravam o limite da amizade, Lúcio começa a sentir-se atraído
por Marta. Marta torna-se amante de Lúcio, apesar deste continuar amigo de
Ricardo. Estranhamente, Lúcio reflecte sobre alguns pormenores das conversas de
Ricardo, como quando o amigo lhe diz que ao observar-se no espelho não via o
seu reflexo: “Ah! Não calcula o meu espanto... a sensação misteriosa que me
varou... Mas quer saber? Na foi uma sensação de pavor, foi uma sensação de
orgulho.”
Por outro lado, Marta também parecia a Lúcio uma
mulher irreal: “sim, em verdade, era como se não vivesse quando estava longe
de mim.” Nada confirmava a sua existência além do perfume penetrante que
ficava no leito, ele precisava não de provar o amor, mas de provar a existência
dessa misteriosa mulher que se lhe entregava e que o fazia trair o amigo: “As suas feições escapavam-me como nos fogem as das
personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas
que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo. Decerto por ser o artista
quem vivia mais perto dela.”
Depois de algum tempo, Marta torna-se fugidia,
demora-se menos com Lúcio, os encontros tornam mais difíceis. Lúcio começa a
desconfiar de Marta e tem ciúmes. Nas tardes em que apenas encontra Ricardo,
começa a procurá-la desesperadamente. Uma vez, seguindo Marta, descobre que ela
fora ao apartamento de Sérgio Warginsky. Nessa época, Lúcio terminara uma peça
de teatro e passeia-se pelas ruas. Num desses passeios, encontra Ricardo e este
faz-lhe uma estranha confissão, Marta é
uma criação sua: “Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se fora a minha
própria alma,. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós
dois... (...) E ao possuí-la, eu sentia, tinha nela, a amizade que te deveria
dedicar.”
Nesta cena alucinante, Ricardo mata Marta, e então
Lúcio descobre que um mistério envolvia essa morte: Marta folheava um livro, em
pé, ao fundo da casa. Ricardo dá-lhe um tiro à queima roupa:
“E então foi o Mistério... o fantástico Mistério da
minha vida...
Ó assombro! Ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto
da janela não era Marta - não! - era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés
- sim, aos meus pés! - caíra o seu revolver ainda fumegante!...”
Marta desaparecera, como uma ilusão, uma névoa.
1 comentário:
No meu tempo de escola, creio que o autor era de "leitura obrigatória"... Mas nada ou quase nada me ficou. E não tenho lido nada dele talvez há mais de 20 anos...
O teu magnífico post despertou-me para a sua leitura... vou colocá-lo na minha agenda...
Mena, querida amiga, tem um bom domingo e uma boa semana.
Beijo.
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