Ficha de leitura de Os Maias
1. Acção (intriga)
1.1. Acções secundárias
Numa tentativa de se explicar os antecedentes familiares de Carlos, em analepse (recuo no tempo) iniciado logo depois das primeiras oito páginas (“esta existência nem sempre assim correra…”), são-nos dadas breves referências à existência tranquila de Caetano da Maia, sob padrões do absolutismo vigente, a juventude movimentada de Afonso guiado pelas ideias liberais, e é-nos narrada a história de Pedro da Maia (sua educação tradicional e seus amores trágicos com Maria Monforte). Esta síntese histórica de três gerações da família Maia é-nos dada em narrativa de ritmo acelerado, com predomínio do pretérito perfeito. As funções cardinais ou núcleos desta intriga relativa a Pedro da Maia são (segundo Carlos Reis):
F1 - Pedro da Maia vê Maria Monforte (p. 22);
F2 - Pedro namora Maria Monforte (p. 26);
F3 - Pedro casa com Maria Monforte (p. 30);
F4 - Maria Monforte foge (p. 44);
F5 - Pedro suicida-se (p. 52).
Esta pequena intriga de que Pedro da Maia é protagonista, com insistência sobre a sua educação, sobre o temperamento doentio da mãe Maria Eduarda Runa e sobre as suas próprias tendências românticas, funciona como um precedente familiar explicativo (indícios) de muita coisa que se passará na vida de Carlos e de Maria Eduarda. Esta intriga secundária d’Os Maias está, pois, para a intriga central como a causa está para o efeito. Neste particular, este romance segue a técnica naturalista (positivista): dadas determinadas causas, seguem-se infalivelmente determinados efeitos (determinismo hereditário). Esta intriga secundária (de Pedro) existe, pois, em função da intriga central (de Carlos).
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1.2. Acção central
A intriga central (do capítulo III até ao fim) apresenta a história dos Maias a partir do Outono de 1875, quando a família se encontrava “reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quase um antepassado, mais idoso do que o século, e seu neto Carlos”, centrando-se sobretudo nos amores trágicos de Carlos e Maria Eduarda.
São estas as funções cardinais ou núcleos da intriga principal:
F1 - Carlos da Maia vê Maria Eduarda (p. 156);
F2 - Carlos visita Rosa (p. 257);
F3 - Carlos conhece Maria Eduarda (p. 350);
F4 - declaração de Carlos (p. 409);
F5 - consumação do incesto (p.438);
F6 - encontro de Maria Eduarda com Guimarães (p. 537);
F7 - revelações de Guimarães a Ega (p. 615);
F8 - revelações de Ega a Carlos (p. 640);
F9 - revelações de Carlos a Afonso (p. 645);
F10 - incesto consciente (p. 658);
F11 - encontro de Carlos com Afonso (p. 667);
F12 - morte de Afonso (p. 668);
F13 - revelações a Maria Eduarda (p. 683);
F14 - partida de Maria Eduarda (p. 687).
Poderíamos reduzir estes núcleos aos momentos mais dinâmicos da narrativa, isto é, aos pontos fundamentais da intriga:
F1 - Carlos da Maia vê Maria Eduarda;
F2 - Carlos conhece Maria Eduarda;
F3 - declaração de Carlos;
F4 - consumação do incesto;
F5 – revelação
F6 – separação de Carlos e Maria Eduarda.
Já dentro da intriga central há outras acções secundárias: episódio romântico de Carlos com a mulher do empregado do Governo Civil de Coimbra (cap. IV); ligações com a espanhola Encarnacion, que trouxera de Lisboa para Coimbra (cap. IV); ligações adúlteras de Carlos com a condessa de Gouvarinho (caps. V, VI, VII, X, XI, XII, XIII); relações adúlteras de João da Ega com Raquel Cohen (caps. IV, V, VI); a história de Eusebiozinho, molengão e tristonho, da sua educação sob as saias da mãe, do fracasso do seu segundo casamento, pois, no dizer de Ega, era “derreado à pancada pela mulher” (caps. III, IV, VII); a sequência da Corneta do Diabo em que aparece um artigo injurioso contra Carlos da responsabilidade de Dâmaso, conseguindo Ega evitar a sua divulgação (cap. XV).
As acções secundárias assinaladas têm uma certa ligação com a acção central, mesmo parecendo, à primeira vista, que não. Assim, essas episódicas e superficiais relações amorosas de Carlos têm a função de realçar, por um processo antitético, o profundo amor existente na relação Carlos/Maria Eduarda. A educação de Eusebiozinho, tal como a de Pedro da Maia, serve de contraponto à educação moderna, de tipo inglês, que Afonso da Maia fizera ministrar ao seu neto Carlos. Mais estreita é ainda a ligação entre o episódio da Corneta do Diabo e a linha central do romance. Com efeito, a ligação amorosa Carlos/Maria Eduarda vinha frustrar as aspirações de Dâmaso, pelo que este faz publicar o artigo. Além disso é a carta vergonhosa que Ega faz escrever a Dâmaso (em consequência do artigo) que provoca o encontro daquele com Guimarães, o qual, como destinador, revelará o fatídico segredo que desencadeará a tragédia.
A Intriga Central desenvolve-se num ritmo extraordinariamente lento, devido não só às acções secundárias inseridas por alternância na acção central, mas também e sobretudo aos longos episódios mais descritivos do que narrativos, de crítica social. Estes quadros, ou frescos, sendo momentos de pausa ou catálises, travam o ritmo da narrativa, pois são momentos estáticos em que personagens e tipos sociais se exibem demoradamente.
Destaquemos os seguintes episódios de crítica social: o jantar no Hotel Central, (cap. VI), as corridas no hipódromo (cap. X), o jantar na casa dos Gouvarinhos (cap. XVI), o passeio pela baixa lisboeta (cap. XVIII) em que Carlos e Ega comentam com pessimismo o passado das suas vidas e os males da sociedade portuguesa.
Note-se que também estes quadros de crítica social têm pontos de contacto com a acção central. Em todos eles, intervém o protagonista Carlos e é fácil de ver certas motivações relacionadas com a sua paixão por Maria Eduarda. Por exemplo, foi às corridas para ver Maria Eduarda e foi no fim do espectáculo que recebeu uma carta dela. No pessimismo de Carlos e Ega, no episódio final, paira ainda a sombra, embora já longínqua, da tragédia do amor incestuoso.
De notar que se dá nesse último episódio como que a fusão do plano da tragédia (intriga) com o plano da comédia (crítica de costumes). Assim, se compreende que Carlos tenha conservado, até ao eclodir da tragédia, uma certa dignidade e venha agora a cair num certo ridículo quando, ao mesmo tempo que corria juntamente com Ega para apanhar o americano, repetia que não correria para nada deste mundo.
Há, portanto, n’ Os Maias dois planos que só não dizemos paralelos porque se tocam em vários pontos: o plano da intriga (plano da tragédia) e o plano da crítica de costumes (plano da comédia).
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1.3. Dimensão trágica d’ Os Maias
A intriga central d’ Os Maias é dotada das características fundamentais da tragédia clássica:
a) O tema do incesto é próprio da tragédia, pois é em si de grande impacto emocional por ser uma ocorrência anormal e pela impossibilidade de solução do conflito por ele provocado. Ele é, por exemplo, o tema fulcral da tragédia de Sófocles, O Rei Édipo.
b) É importante a acção do DESTINO que se manifesta, por exemplo, no facto de Maria Monforte ter escolhido para nome de seu filho Carlos Eduardo (carlos Eduardo Stuart foi o último dos Stuarts, o fim de uma família); na afirmação de Ega a respeito de Carlos e Maria Eduarda “ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, estão marchando um para o outro” (de notar a força invencível do destino expressa pelos advérbios de modo); na referência a Afonso da Maia, já perto do desfecho fatal, “Mas o velho afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido enfim por aquele implacável destino que, depois de o ter ferido na idade da força com a desgraça do filho, o esmagava ao fim da velhice com a desgraça de neto”; no aparecimento casual de Guimarães (a força motora do destinador no momento das fatídicas revelações).
c) São inúmeros os PRESSÁGIOS ou indícios:
· Quando o procurador Vilaça pretendia dissuadir Afonso de vir habitar o Ramalhete: “…por fim aludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete”.
· Afonso da Maia, ao ver Maria Monforte pela primeira vez junto de Pedro: “Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cor-de-rosa, toda em folhos, quase cobria os joelhos de Pedro… Afonso (…) olhava cabisbaixo aquela sombrinha escarlate que agora se inclinava sobre Pedro, quase o escondia, parecia envolvê-lo todo, como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche…” (note-se como todo este envolvimento vermelho prenuncia a morte trágica de Pedro).
· Ega, embora com uma certa ironia, avisava Carlos envolvido no grande amor: “…hás-de vir a acabar, desgraçadamente como ele (Pedro) numa tragédia infernal…”
· Depois de Carlos ter ganhado no jogo, durante as corridas, a “vasta ministrada da Baviera” disse-lhe: mefiez-vous! (sorte no jogo…).
· Carlos achava que Maria Eduarda era psicologicamente parecida com o avô (“e nestas piedades Carlos achava-lhe semelhanças com o avô”); Maria Eduarda, por seu lado, considerava Carlos parecido fisionomicamente com sua mãe (“é extraordinário, mas é verdade, pareces-te com minha mãe!”).
· O narrador, ao descrever o quarto em que se consumaria o incesto: “o leito (…) bordado a flores de oiro, (…) enchia a alcova, esplêndido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão trágica…).
d) A intriga é dotada dos ingredientes fundamentais da tragédia clássica:
· PERIPÉCIAS, sobretudo a peripécia fundamental, aquela que provoca “a súbita mutação dos sucessos”, isto é, as revelações casuais de Guimarães a Ega, quando, ao entregar-lhe o “cofrezinho”, lhe disse: “…entrega-o da minha parte a Carlos ou à irmã”.
· RECONHECIMENTO, ou anagnórise, que corresponde ao conhecer”, isto é, ficam a saber que são irmãos. O reconhecimento coincide com o clímax, ou ponto mais alto da emoção dramática.
· CATÁSTROFE, que se segue logicamente ao reconhecimento e que consiste na morte de Afonso e na separação de Carlos e Maria Eduarda.
e) As PERSONAGENS que intervêm directamente na intriga trágica são NOBRES e conservam sempre uma certa dignidade até acabar a acção trágica.
Note-se que, mesmo nos primeiros amores, episódicos, de Carlos, nunca esta personagem caiu no ridículo: foi sempre ele que tomou a iniciativa de cortar com essas ligações, por motivos de humanidade, ou de honra.
Carlos, assim como Maria Eduarda, só foram recuperados para o mundo da comédia, quando deixaram de ser personagens da tragédia. Por exemplo, quando Carlos, no episódio final, corria para o americano, ao mesmo tempo que repetia que não correria nem para um monte de oiro, já era uma personagem de comédia.
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