sábado, 4 de junho de 2011

Os Maias - Carlos da Maia

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Carlos da Maia

Na opinião do Professor Carlos Reis, Carlos é a personagem central desta obra.

Nesta obra, a família Maia não é considerada como entidade colectiva, excepto nas primeiras páginas, pois Carlos ocupa a atenção do narrador a partir do capítulo segundo, e a Afonso e Pedro da Maia cabem-lhes apenas os dois capítulos iniciais, isto é, aqueles que se relacionam com os antecedentes familiares de Carlos. Esta situação de desequilíbrio permite-nos concluir que as gerações de Afonso e de Pedro da Maia surgem sobretudo em função da necessidade de explicar a existência de Carlos em Lisboa, no Outono de 1875, quando começa a história. A presença desta personagem central compreende três etapas: 1) a época da sua formação, representada no capítulo terceiro pelas referências à sua educação e aos estudos universitários em Coimbra; 2) percurso em Lisboa, a sua vida social, a sua vida amorosa (a participação na intriga) e a sua partida de Lisboa; 3) regresso a Lisboa carregado de significados simbólicos ideológicos. Com Carlos da Maia assiste-se sobretudo à caracterização indirecta, ou seja, uma caracterização essencialmente dinâmica em que os atributos da personagem são apreendidos à medida que a sua actuação no decurso da acção vai permitindo.

“O abade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:

- Deve-se começar pelo latinzinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basezinha!

- Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça! Músculo...

E repetiu, duas vezes, agitando os formidáveis punhos:

- Prrimeiro músculo, músculo!...

Afonso apoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo de erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negócios duma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras coisas do Universo em que vive...

- Mas enfim os clássicos, arriscou timidamente o abade.

- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo duma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...

O abade coçava a cabeça, com o ar arrepiado.

- A instruçãozinha é necessária, disse ele. Você não acha, Vilaça? Que V. Ex.ª, Sr. Afonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas enfim a instruçãozinha...

- A instrução para uma criança não é recitar Titire, tu patulae recubans... É saber factos, noções, coisas úteis, coisas práticas...”

Cap. III

N' Os Maias, encontramos dois tipos de educação opostos:

Educação

Tradicionalista

Inglesa

Preceptor

Padre Vasques

Sr. Brown

Defende

Ensino do latim

Estudo dos clássicos

O lema: “mente sã em corpo são”

Recursos expressivos que caracterizam duas atitudes diferentes

Diminutivos ("latinzinho", "basezinha", "instruçãozinha") que, ironicamente, remetem para a sua falta de firmeza.

Expressividade do verbo "arriscou" e do advérbio de predicado com valor modal "timidamente" que transmitem a sua timidez e falta de vitalidade.

Repetições: "músculo, músculo"; "força, força" transmitem a sua firmeza e determinação.

Aliteração da vibrante "r" que transmite a sua vitalidade e força.

A educação n’ Os Maias

O tema da educação surge n’ Os Maias como um dos principais factores da mentalidade do Portugal romântico por oposição ao Portugal novo, voltado para o futuro.

Pedro da Maia e Eusebiozinho protagonizam a educação tradicionalista e conservadora, enquanto Carlos recebe a educação inglesa. A incapacidade de enfrentar as contrariedades ou a capacidade para se tornar interveniente na sociedade são as consequências imediatas dos processos educativos opostos.


A educação portuguesa

(tradicionalista, católica e conservadora)

valoriza:

- a memorização;

- o primado da cartilha;

- a moral do catecismo;

- a devoção religiosa com a concepção punitiva do pecado;

- o estudo do Latim, considerada uma língua morta.

desvaloriza:

- a fuga ao ar livre;

- o contacto com a Natureza;

- a criatividade;

- o juízo crítico.

Exemplos:

- torna Pedro da Maia um fraco, incapaz de encontrar uma solução para a sua vida quando Maria Monforte o abandonou, e deforma a sua vontade própria.

- torna Eusebiozinho um molengão e tristonho, arrastando-o para uma vida de corrupção, para um casamento infeliz e para uma decadência física e moral.

Quem a aprova: o Vilaça, o Padre Vasques, a gente da casa dos Maias e a gente de Resende.

Quem a desaprova: Afonso e o narrador.


A educação inglesa

valoriza:

- o desenvolvimento da inteligência, graças ao conhecimento experimental;

- o amor da virtude e da honra como convém a um cavalheiro e a um homem de bem;

- a ginástica;

- o contacto directo com a Natureza;

-o gosto pelas línguas vivas;

- criar a saúde , a força e os seus hábitos, fortalecendo o corpo e o espírito.

desvaloriza:

- o saber da cartilha;

- as línguas mortas.

Exemplo:

Graças a ela, Carlos da Maia adquiriu valores de trabalho e um conhecimento experimental que o levaram a abraçar um curso de Medicina e projectos de investigação. (Carlos fracassou não pela educação, mas apesar dela. Foi a sociedade que o conduziu ao fracasso, pela ausência de motivações, e pela paixão romântica que o seduziu.)

Quem a aprova: Afonso e o narrador.

Quem a desaprova: o Vilaça, o Padre Vasques, a gente da casa dos Maias e a gente de Resende.

Os hábitos presentes na educação de Carlos da Maia

“ (...) todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água fria (...) " – resistência física

"Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro." - liberdade e agilidade física

“Só a certas horas e de certas coisas... " - disciplina de horas e alimentação

"E outras barbaridades (...)” - dureza dos métodos

Carlos da Maia é caracterizado como uma criança saudável, alegre e cheia de vitalidade. Estas qualidades são realçadas ao contrastarem com a senhora viscondessa:

- "exausta daquele esforço"

- "tímida e queda"

- "estendeu-lhe a mão papuda e pálida"

- "rosto anafado e mole"

- "braços rechonchudos "

“Quase desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado num cobertor, folheando in-fólios, com o craniozinho calvo de sábio curvado sobre as letras garrafais de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a linguazinha de fora. Assim na família tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. (…)

Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela de o pôr de pé, ampara-lo, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas flácidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ela...

Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo, num fio de voz, um recitativo lento e babujado:

É noite, o astro saudoso

Rompe a custo um plúmbeo céu,

Tolda-lhe o rosto formoso

Alvacento, húmido véu...

Disse-a toda - sem se mexer, com as mãozinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopeia, ia cerrando as pálpebras.

- Muito bem, muito bem! exclamou o Vilaça, impressionado, quando o Euzebiozinho findou coberto de suor. Que memória! Que memória! É um prodígio!...”


Eusebiozinho Silveira, vizinho de Carlos, é a personagem que tipifica o modelo oposto ao de Carlos. Neste excerto, podemos perceber os princípios da educação desta personagem.

Atenta nas expressões do excerto seleccionado e nas respectivas críticas subjacentes à educação de Eusébio:

“ (...) não se descolava das saias da titi (...) " - Superprotecção feminina.

“ (...) teve ela de o pôr de pé, ampará-lo (...) " - Fragilidade física.

“ (...) abriu a boca e, como de uma torneira lassa veio de lá escorrendo (...) um recitativo (...) " - Saber baseado na memória.

“ (...) as perninhas flácidas (...) " - Fragilidade física.

"A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet (...) " - Superprotecção feminina.

“ (...) aparece (...) aos berros pela titi (...) " - Superprotecção feminina.

Neste excerto, os diminutivos são empregues com uma intenção pejorativa e irónica: perninhas, versinhos, craniozinho, mamã, mãozinhas.


Devido à centralidade que Carlos ocupa na obra, poder-se-á denominar de protagonista. É rico, bem-educado, culto, de gostos requintados, encarna, em oposição à figura de Pedro da Maia, seu pai, o resultado da educação à inglesa. De facto, é um gentleman, não teme o esforço físico, é corajoso e frontal. Incapaz de uma canalhice, é generoso e amigo do seu amigo. Contudo, revela-se diletante, ou seja, incapaz de se fixar num projecto sério. Os seus princípios morais toleram a sordidez do incesto, cuja ideia só rejeita por via de repulsa física.

Eça terá querido personificar em Carlos o ideal da sua juventude, a que fez a “Questão Coimbrã” e as “Conferencias do Casino”, acabando no grupo dos vencidos da vida, de que Carlos é um bom exemplo.


Vejamos o retrato de Carlos (pág.96). Ao contrário do de Pedro, é menos pormenorizado, mais físico do que moral, muito incompleto para estar dentro dos processos naturalistas. A caracterização de Carlos vai ser feita indirectamente ao longo da intriga, deduzindo-se da sua actuação. Assim, a sua vocação pela medicina é-nos revelada pela atracção de Carlos pelas estampas anatómicas, as suas tendências boémias são sugeridas pelos seus amores fortuitos em Coimbra, o seu requintado gosto artístico apercebe-se da sua actuação na decoração do Ramalhete, o seu diletantismo é denunciado pelas suas actividades dispersivas (armas, cavalos, bricabraque, literatura, medicina, etc.), enfim, as relações sociais de Carlos revelá-lo-ão como uma das personagens, apesar de tudo, mais válidas no contexto sócio-cultural em que se movimentava, não obstante ele e o seu melhor amigo, Ega, verem-se obrigados a concluir, no fim do romance, terem falhado na vida, como “indivíduos inferiores que se governam pelo sentimento e não pela razão”.

Assim se conclui que Carlos, tal como Ega, falharam na vida, porque seguiram na prática aquilo que sempre repudiaram em teoria: o romantismo.

Carlos é o protagonista (personagem principal) da intriga central e goza quase continuamente do privilégio do ponto de vista, mediante a focalização interna que o narrador pratica nele muito frequentemente.


Síntese


Afonso da Maia

Ao contrário de seu pai Caetano da Maia, conservador e religioso, é retratado como o representante do liberalismo, em oposição ao absolutismo da época.

É um homem culto, requintado nos gostos, ávido na leitura (Tácito, Rabelais, Rosseau) e generoso com os amigos e com os necessitados.

Personifica a integridade e rectidão de princípios, tornados raros no país.


Maria Monforte

Filha de Manuel Monforte, é conhecida em Lisboa por “a negreira”, alcunha ligada à forma como o seu pai enriqueceu, transportando escravos.

Deslumbra Pedro com a sua beleza endeusada.

Salienta-se o seu gosto pelo luxo e a sua capacidade de se fazer admirar.

É o protótipo da cortesã: leviana e amorosa, sem preocupações culturais ou sociais. Tem uma personalidade fútil, mas fria, caprichosa, cruel e interesseira. É nela que radicam todas as desgraças da família Maia.


Pedro da Maia

Este protótipo de herói romântico é fisicamente pequeno, de rosto oval e tem os bonitos olhos dos Maias. Contudo, herda a debilidade física e moral e as crises de melancolia dos Runas.

É um homem sem vontade própria e sem capacidade de resolver os problemas sozinho. Com a fuga de Maria Monforte e o fracasso do seu casamento, suicida-se.


Maria Eduarda

Apresentada como uma deusa, à sua perfeição física alia-se a faceta moral e social que tanto deslumbra Carlos da Maia.

A sua apresentação cumpre os modelos realista e naturalista, pois é o exemplo acabado de que o indivíduo é um produto do meio ao coincidirem, no seu carácter e no espaço físico que ocupa, duas vertentes distintas da sua educação: a dimensão culta e moral e a sua faceta demasiado vulgar.


Carlos da Maia

Segundo filho de Pedro e Maria Monforte, é descrito como um belo jovem da Renascença com olhos negros e líquidos, próprios dos Maias.

Apesar da sua educação à inglesa e da sua cultura, que o tornam superior ao contexto sociocultural português, deixa-se absorver pela inércia do país, assumindo o culto da imagem, numa atitude de dândi.

Acaba por assumir que falhou na vida, simbolizando, a incapacidade de regeneração do país a que se propusera a própria Geração de 70.


Romance de família

Quando se inicia a narrativa Os Maias tudo leva a crer que estamos perante um romance de família, isto é, uma narrativa centrada na evolução de sucessivas gerações de uma família e que pretende, sobretudo, representar as condições históricas, sociais e políticas em que essa evolução se dá. Este tipo de romance constitui-se, então, um vastíssimo e movimentado cenário de tipos humanos e eventos variados, tudo ligado pelos pontos de contacto desse cenário com a família Maia.

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