sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Débil - Cesário Verde


A Débil

Eu, que sou feio, sólido, leal,

A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

Cesário Verde


Este poema põe em relevo uma figura feminina que escapa à típica mulher citadina, mas também à mulher que surge no espaço rural.
O sujeito serve-se de um conjunto de signos que contribuem para caracterizar a mulher: "bela, frágil, assustada, recatada, honesta, fraca, natural, dócil, recolhida", remetendo para o seu retrato moral. Já os vocábulos "loura, de corpo alegre e brando, cintura estreita, adorável, com elegância e sem ostentação, esbelta e fina, ténue" remetem para o seu aspecto físico.
Por outro lado, o sujeito lírico considera-se "feio, sólido, leal; sente-se prestável, bom e saudável quando a vê, ao ponto de desejar beijá-la. Afirma ainda ser "hábil, prático e viril", ou seja, com força suficiente para a socorrer quando ela precisar.
Para além da figura feminina, o sujeito poético refere ainda os espaços citadinos como o café, o largo, as ruas, caracterizando-os de forma negativa, chamando ao café "devasso"; do largo destaca o pedestal e das ruas a agitação que nelas se verifica. Nestes espaços movimentam-se figuras sórdidas, que ele caracteriza por " turba ruidosa, negra" e por " uma chusma de padres de batina". Isto significa que o local urbano em que se encontra se presta à movimentação mesquinha destes seres escuros que permitem destacar a fragilidade da jovem como a única capaz de clarear estes locais, torná-los mais brilhantes e mais atractivos ao sujeito lírico.
Com o intuito de evidenciar o contraste entre o espaço e a jovem senhora, o sujeito poético faz referência ao ajuntamento, característico dos espaços urbanos, onde a agitação e a confusão imperam. Sobressaem as diferentes classes sociais que se podiam encontrar no espaço citadino, o que permite afirmar que a cidade era palco de vários seres que nele se movimentam, uns por ociosidade, outros por obrigação, tal como seria normal numa cidade onde está a chegar a industrialização e para onde acorrem os mais pobres, na expectativa de aí encontrarem melhores condições de vida.
A luminosidade deste dia só é posta em evidência quando a figura feminina surge nos locais onde anteriormente se moviam figuras conotadas com os aspectos negativos da cidade. Só a visão desta mulher frágil e pura lhe possibilita uma visão mais positiva da realidade, estando aqui realçados o tempo e o espaço psicológicos, ou seja, aqueles que se resultam do estado de espírito do sujeito poético e da sua construção.
O sujeito lírico revela o receio de perder a mulher admirada, porque, "os corvos" a poderiam arrancar daquele local, a ela que não passava de uma "pombinha tímida e quieta". Por isso, o sujeito poético mostra-se capaz de a salvar, mesmo que seja a custo da sua própria vida, mostrando-se protector da fragilidade e capaz de tudo para poder conservar aquela figura que o fazia recordar a simplicidade do campo e das mulheres que o povoam.
Apesar da oposição que Cesário Verde costuma estabelecer entre a mulher do campo e a mulher da cidade, a figura feminina que aqui é retratada é uma espécie de mistura, uma vez que o retrato que dela traça está associado à mulher campesina, mas o espaço em que se movimenta é-lhe estranho e, por, isso, esta sente-se perdida, a necessitar da protecção masculina. Trata-se de uma mulher do campo que se sente desnorteada num espaço que não está adequado à sua fragilidade.
Cesário Verde serve-se de um conjunto de processos que, também neste poema, podem ser percepcionados. É o caso do vocabulário preciso e exacto e as imagens carregadas de visualismo que dão uma visão perfeita das realidades visionadas. Além disso, percebe-se a objectividade que imprime ao conteúdo, afastando-se, deste modo, do lirismo romântico. Para retratar fielmente a realidade ou as figuras com que depara, o autor emprega a adjectivação e as frases preposicionais de valor adverbial. Acresce ainda referir o uso das quadras e dos versos decassilábicos que permitem uma maior aproximação à prosa.
Concluindo, este é um texto cheio de referências à realidade social, onde se percepciona a crítica e a ironia de que Cesário Verde se serve e que reflectem o seu carácter subjectivo.

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