terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Culambismo

"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma 
modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da
 revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve
 complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por
 todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber
 o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
 
 Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de
 um agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é
 identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os
 prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta.
 À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na
 hierarquia.

 Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era
 praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida
 prosaicamente como «engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os
 chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores, os jornalistas
 engraxavam os ministros, as donas de casa engraxavam os médicos da
 caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para
 passar graxa. Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da
 verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
 
 Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada.

O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o
 escárnio da turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao
 Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava
 de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se 
irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos 
até ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a
 lambe-cu. Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação
 hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos
 e lamber um cu.

Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se
 dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os 
estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing.

Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do
 engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.
 
 (...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão
 mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que
 a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de
 subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O
 culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de
 culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar
 inglês."




Miguel Esteves Cardoso

1 comentário:

mfc disse...

Tão verdadeiro!!!

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