terça-feira, 17 de julho de 2012

Cuidado com a língua!

Confesso um clássico cliché. Aproveito muito as férias para pôr em dia a leitura. Menos de jornais (ou não seriam férias), mais de revistas e da minha querida literatura, com os romances à cabeça. Os livros publicados recentemente juntam-se já à manada do chamado acordo ortográfico. Já o exprimi várias vezes, mas nada como ser confrontado com a coisa largas horas por dia para reafirmar: é uma parvoíce que era desnecessária. E não me venham, por favor, com o argumento estafado que as coisas são mesmo assim, senão ainda escreveríamos farmácia com ph. Importa relembrar que o acordo foi uma florzinha de enfeite para justificar um pouquinho da missão daquela entidade parda que se chama países de língua oficial portuguesa. E que, precisa e ironicamente, acabou com a língua portuguesa, traduzindo-a, ajeitando-a, moldando-a, torcendo-a, de modo a que os brasileiros não tenham “dificuldade” em ler. Basta pensar num qualquer exemplo, de palavras que se escreviam assim e agora se escrevem assado, para confirmar que muitas palavras portuguesas desapareceram, enquanto todas as expressões e grafias brasileiras permanecem inalteráveis. Acresce aquela que me parece ser a maior aberração do fenómeno. Foi assinado com pompa, e a circunstância de “ter entrado em vigor” não acabou, de todo, com as dúvidas. Ainda hoje, sábios da gramática e do léxico não sabem responder a muitas dúvidas. O que significa que se avançou para uma coisa sem lhe ter tirado todas as medidas. Quanto ao assunto, considero-me, há muito, arrumado na galeria dos que não aderirão, enquanto mo permitirem. E nada me satisfaz mais do que ver engrossar a minha tropa, o número dos que estão comigo, e falo de muitas das eminências maiores da escrita na nossa língua, que, aos poucos, vão defendendo o mesmo que eu. Sinto-me particularmente bem quando verifico que muitos deles e delas são das personalidades que mais admiro. O tempo se encarregará de ridicularizar a génese e urgência do acordo. Lembrei-me desta falta de foco nos reais problemas da língua porque reparo, a cada dia, que problemas muito maiores continuam sem solução, e atropelos constantes são cometidos por muito boa gente com responsabilidade, nomeadamente colegas meus da comunicação social, dos mais graúdos aos miúdos saídos recentemente da faculdade. Falo da confissão, ou admissão, mas também da espantosa mania de se confundir factos com ideias. Um exemplo? Bom, tenho à frente uma entrevista de “verão” com uma jornalista de televisão. Passe o pleonasmo, a ideia é que conheçamos as suas ideias sobre as coisas, o mundo, enfim, tudo isso. Por isso é ela a entrevistada, e não outra pessoa qualquer. Adiante. Logo na introdução, a revista escreve que “fulana diz que Portugal é um país de forte tradição marítima”. Espero que tenha detectado o galho, mas se assim não for, eu explico. Lembra-se? Confundir factos com ideias? Portugal é esse país com fortes tradições salgadas. Facto. Não por a entrevistada o dizer. Quando muito, o texto poderia referir que “fulana lembra que Portugal blá-blá e por isso, como portuguesa, gosta muito de pescar e fazer surfe e passear na praia, etc. O que quiserem. Erro igualmente comum é o de colocar pessoas a “confessar” coisas extraordinárias sobre si, como “confesso que sou um símbolo sexual”, ou “o líder político admite que será o melhor primeiro-ministro que este país já viu”. A questão é espantosamente simples, e aprendia-se nos bancos da primária. Não “confessamos que somos belos”, se confessamos é algo que ou não nos agrada ou alguém descobriu sobre nós. Admitimos, sim, ser um assassino em série ou ter desviado dinheiro. Quando confessamos, fazemo-lo contra uma ideia que tinham de nós. Confessar, ou admitir, é, regra geral, não ter outro remédio. Tudo o resto é mal aplicado, a não ser que se seja um poeta genial, como Neruda, e se jogue magistralmente com o equívoco, para fins estéticos: confesso que vivi.


Rodrigo Guedes de Carvalho

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