sábado, 4 de agosto de 2012

"NOVOS MODOS DE NÃO SER"


No princípio não é o verbo, é a falácia. É preciso alegar falaciosamente a prossecução de um grande desígnio para fazer negócio com coisas que a opinião pública, indiferente aos milagres operados pelas "bolhas" na economia, ingenuamente considera intocáveis.
Se a oportunidade de negócio repugna ao senso-comum como uma profanação, se suscita as maiores dúvidas e preocupações aos cidadãos instruídos e informados, se põe em causa valores fundamentais, então é preciso um grande desígnio e transferir vigorosamente o ónus da prova. Com dinheiro, isso arranja-se...
Se o impingir do tal desígnio falhar, se a tentativa de transferência do ónus da prova for desmascarada por quem defenda tenazmente os valores postos em causa, resta a constatação do facto consumado, pois nessa altura já o poder político (que nasce e cresce quase sempre ajoelhado diante do poder económico) apoiou incondicionalmente o alegado grande desígnio, e o negócio está em marcha. "Paciência, é demasiado tarde, temos pena..."

O dinheiro ajuda muito a encolher os ombros a sucessões de falácias e, sobretudo, a factos consumados. O cansaço também. A indiferença, mais ainda. E assim medram os vícios antidemocráticos nas democracias, ao ponto de aniquilarem os valores humanos fundamentais e as perspectivas de futuro. O paradigma é muitas vezes este mesmo, facilmente identificável.

"Vamos matar a fome no Mundo!", diz-se, e patenteiam-se batatas ultra-competitivas, batatas topo-de-gama, uniformes no peso e na forma, sem manchas na pele ou na polpa, à prova de fungos e insectos e vírus e herbicidas, dir-se-iam a perfeição com aparência de tubérculo...
"Vamos matar a fome no Mundo!", diz-se, e qualquer dia não há outras espécies para cultivar, pois os genes patenteados contaminarão e aniquilarão o património genético de inúmeras espécies vegetais, a riqueza e o potencial da sua biodiversidade... "Mas sempre se fez melhoramento de plantas!" ...Sim, mas o melhoramento de plantas não leva genes de ratazana para o genoma das alfaces (Virginia Tech, Estados Unidos da América)... "Pois, mas esta biotecnologia vai acabar com a fome no Mundo... Provem lá que não vai!" ...Eis a tal transferência do ónus da prova.

Enquanto se esgrimem argumentos, já se transferem os genes que codificam os pigmentos de certas flores para dar cores novas ao tomate (John Innes Centre, Reino Unido), apelativas aos consumidores, e já os organismos geneticamente modificados (OGM) estão, sobretudo nos Estados Unidos da América e no Terceiro Mundo, a produzir riqueza para poucos. Nos solos áridos resultantes da desflorestação da selva amazónica, já há anos se produz a soja transgénica que depois entra, através das rações para animais, em países que só aparentemente vedam o consumo de OGM na alimentação humana...

Facto consumado, já está... e, contra factos, não há argumentos. Quem são os retrógrados que pretendem tentar travar os progressos científicos? (Serão os mesmos que se opõem à construção de centrais nucleares?)

Já nem é referida a suposta intenção primordial de acabar com a fome no Mundo, e essa lá continua e até se expande, alheia ao "marketing" das grandes multinacionais que sonham controlar o preço de toda a alimentação dos que possam pagar para se alimentar, no futuro... Os morangos, quando todos tiverem "direitos de autor", não poderão ser cultivados no quintal, irão carecer de licenciamento. As sementes programadas para gerarem plantas estéreis têm o equivalente a um microscópico código de barras. Um dia, também os seres humanos terão código de barras tatuado algures, ou "chip" subcutâneo, ou actualizações disponíveis para o seu "software" mental, quem sabe...?

"Vamos unificar a Língua Portuguesa no Mundo!", diz-se, e cria-se o conceito de "Lusofonia", a propósito do qual os "lusófonos encartados" viajam muito e organizam congressos, onde se produzem imensos discursos e onde se abrem oportunidades de negócio. A "Lusofonia" amealha subsídios chorudos e será referida tantas vezes quantas as necessárias para que se creia que existe de facto.

Unificar a Língua Portuguesa no Mundo? Enquanto eu apanho um autocarro, um brasileiro continuará a "estar pegando ônibus", e aqui temos a responsabilidade de preservar a matriz do Português, um património com muitos mais séculos do que o próprio País, parte indissociável da nossa identidade, da nossa soberania... Não é por decreto que se sustém o fenómeno espontâneo e natural da divergência linguística. Não é pelo empobrecimento brutal da variante europeia que se opera qualquer aproximação.
Em Português do Brasil, ou Brasileiro: Um brasileiro chega num hotel em Portugal, enxerga uma placa dizendo "receção" e pensa "Minha nossa, aqui a recessão econômica está ficando braba, já tem atendimento para hóspede sem grana...", porque ele continuará escrevendo "recepção" e continuará falando "ricepição". Queira-se ou não. Aonde pára (ou "para", em "acordês atual") a unificação? (Nestoutro paradigma de "bolha", mesmo transferindo-se o ónus da prova, a demonstração da falácia é bem fácil de fazer por absurdo.)

A nossa língua – como todas as línguas – é um ser vivo muito complexo, tem um "património genético" que a filia evolutivamente no conjunto das línguas europeias, há parentescos entre palavras, há várias formas de dizê-las, cada palavra tem uma História e todos somos nós em cada uma delas... Cada uma é um gene, e o Português de Portugal é o nosso ADN, o nosso legado aos nossos filhos e netos, não um linguajar de plástico adulterado pelo "contato direto sem espetativas" com uma escrita ao jeito da "fast-food", uma escrita artificial e artificiosa inventada sobre o joelho, ao sabor de conveniências obscuras.

"Vamos dar expressão mundial à 'Lusofonia', o Português poderá vir a ser 'língua oficial' / 'língua de trabalho' nas Nações Unidas!" ...Não, o Português não poderá vir a ser língua de trabalho, muito menos língua oficial, nas Nações Unidas; essas são descaradas mentiras, mentiras muitas vezes repetidas por quem tem as mais altas responsabilidades, mentiras-de-Estado...! "...Pois, todavia Portugal é minúsculo e o Brasil é imenso, não queiramos assumir uma posição neocolonialista!" (Terão os portugueses de pedir licença à "Lusofonia" para "colonizar" Portugal?) ...Mas, perante os cinco países africanos de expressão portuguesa, os territórios da Ásia e Timor Lorosae, onde é a variante europeia do Português que prevalece, será agora o Brasil a impor um neocolonialismo económico? Ou populacional? ...Sim, porque inicialmente, em 1986, o "acordo ortográfico" chamou-se "acordo ortográfico luso-brasileiro" e só o ridículo "cagado na praia de fato" susteve (pelo dejecto na indumentária) o projecto de suprimir-se o acento agudo nas palavras esdrúxulas... Lembram-se? Eram os "lusófonos" a dar os primeiros passos, ousados, desastrados.

Agora, é o facto consumado (ou outro tabu?) e abre-se um precedente. Criado um "lusofonês" ou "acordês" só nosso, suposta a obrigatoriedade de se instalar o "conversor" Lince que não "faculta" as "facultatividades", está aberta a época de caça à consoante alegadamente muda e espúria, a época de caça ao hífen e a alguns acentos, etc.... Adaptem-se os falantes e escreventes do Português de Portugal a uma decisão internacional já tomada no âmbito da "Lusofonia", tal como os ilustres deputados da Nação se adaptaram bem à disciplina partidária e votaram na ignorância, contra a sua consciência, contra todos os pareceres dos especialistas, contra a vontade dos que os elegeram... A responsabilidade de todos foi e é "chutada para canto" (ou "escanteio", no Brasil).

Qualquer dia, quando em Portugal se propuser a extinção da letra "H" – "consoante muda" mais muda não há! –, ou a supressão total da acentuação gráfica e da cedilha com vista à "adocao" de teclados internacionais, os brasileiros irão repor o seu trema, muito naturalmente, pois é-lhes necessário... Continuarão com as mesmas hediondas taxas de analfabetismo e de iliteracia funcional, ou talvez não. Continuarão a ter um dos piores sistemas de ensino a nível mundial, ou talvez não. Provavelmente, continuarão sem conseguir gerir um caos linguístico bem anterior a este que estamos a instalar por cá. O Brasil irá gerir o seu destino por si mesmo, sem consultar a "Lusofonia", isso é seguro; era o que mais faltava...!

Por cá, continuará a ser necessário vender ainda mais dicionários e livros escolares "atualizados", promover ainda mais "ações de formação" para ensinar o que então for considerado "Português correto" (leia-se "corrêto" como em "carreto", claro!), e far-se-á um "neo-acordês" ainda mais "atual", patrocinado pelas agências de viagens escolhidas pelos senhores da "Lusofonia", primos dos governantes que apelam a que emigremos...

O "acordês" não é Lei, é apenas "resolução" muito pouco resoluta... Ainda que o fosse, não há leis irrevogáveis, não há tratados internacionais irreversíveis. "O povo é quem mais ordena", ou já não é...!?

Nem interessa saber quem promove (ou a quem convém) o linguicídio. Os brasileiros eruditos repudiam-no vivamente, isso é sabido. Angolanos e moçambicanos rejeitam-no, estupefactos, incrédulos. ...Interessa, isso sim, saber quem se cala, saber quem consente, aqui e agora... Quantos de nós?



Madalena Homem Cardoso


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