sábado, 11 de agosto de 2012

Variações acerca do “Novo Acordo Ortográfico”


Não pude deixar de publicar este texto excelente de António Rosa Mendes


No final deste artigo vai aparecer, em itálico, uma nota que não é da minha responsabilidade mas da direcção do jornal:
 “O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico”. Presumo que a direcção procede bem: o leitor tem, efectivamente, todo o direito a saber se quem escreve o faz ou não “ao abrigo” do aludido convénio. Em princípio, seria desnecessária, por redundante, a advertência, porquanto qualquer leitor atento, ao primeiro lance de olhos, devia lobrigar se a ortografia era “nova” ou era “velha”. Pelo que a nota final revela, no fundo, que a direcção do JA sabe, ou pelo menos suspeita, que a generalidade dos leitores desconhece o clausulado do “novo Acordo Ortográfico”. Tal qual eu desconheço, confesso. E até adianto: apesar de trabalhar num meio escolar, portanto privilegiado para o efeito, até à data só encontrei uma única pessoa que verdadeiramente conhecesse, em sua parafernália de regras e excepções, o famigerado acordo. Sei de outras muitas, é verdade, que pretensamente o aplicam. Porém essas limitam-se à fácil e lúdica erradicação das consoantes mudas: escrevem “fato” por facto e “ata” por acta, põem “ótimo” por óptimo, grafam “espetador” por espectador… E pronto – em relação a esses escreventes, a nota final da direcção (da “direção”, emendariam eles) já não teria cabimento. Enfim, reina neste campo devastado da ortografia portuguesa, como é público e notório, a triste confusão da anarquia; as instâncias responsáveis não curaram de explicitar a pertinência, nem as motivações, nem mais comezinhamente a utilidade prática do “novo Acordo Ortográfico”; e, embora a administração pública (nem toda) o tenha adoptado (ou “adotado”?), parece que nem sequer entrou juridicamente em vigor.


Tudo isto é bem revelador da insustentável ligeireza com que se trata o mais precioso componente da nossa identidade nacional: a linguagem escrita, que é a coluna vertebral da consciência humana, o repositório do pensamento rigoroso, a matéria plástica da expressão verbal em toda a sua multímoda riqueza de matizes. Mas a palavra escrita deixou de ter valor. Hoje predominam a imagem e o som (ou melhor, o ruído) – e os insensatos comprazem-se estultamente no estólido estribilho de que “Uma imagem vale mais que mil palavras”, sem se aperceberem de que ele corresponde afinal, não à valorização das artes visuais, mas aos interesses comerciais das televisões, que são o grande poder espiritual da nossa época. Por conseguinte, a palavra escrita deteriorou-se, degradou-se, estragou-se; moeda corrente é um discurso escrito sem ordem nem sintaxe, por vezes indecifrável, atropelando a gramática e as mais elementares regras da correcção linguística. É o resvalar insidioso para a barbarização intelectual e moral, para a conversão dos cidadãos em autómatos manipuláveis, sem espírito crítico nem exigência mental. Onde a linguagem escrita se corrompe – ensinaram os humanistas do século XVI – é a própria sociedade que se corrompe.



A atabalhoada aplicação do “novo Acordo Ortográfico” insere-se nessa calamitosa desvalorização da palavra escrita.

 Basta estar atento à realidade comunicacional circundante para constatar que só contribuirá para acrescer a confusão e fomentar a ruína da língua portuguesa, que mormente as televisões tão empenhadamente prosseguem. Cite-se, só como pano da amostra, o “jornal das 8” da TVI, de 16 de Abril passado: durante largos minutos um grosso letreiro afixava: INDEMINIZA-ÇÃO – os ignaros redactores (perdão! “redatores”) da estação, com ou sem “novo Acordo Ortográfico”, nem o vocábulo “indemnização” são capazes de escrever correctamente (outra vez! “corretamente”).


Mas há pior, e donde menos se espera. Ora atente-se no acórdão n.º 244/2011 do Tribunal Constitucional (sim, o areópago dos sábios, no qual é suposto que estagiem venerandos jurisconsultos, tão cordos quanto sapientes). Nessa sentença, publicada e facilmente consultável, pode ler-se na sua parte conclusiva, a mais importante: “Em conclusão, pode afirmar-se (…) que, quanto ao aspecto em questão, não há lugar há aplicação subsidiária de quaisquer normas do Código de Processo Civil”. Afinal, perguntará perplexo qualquer normal sujeito, “não há” ou “há”? O verbo haver (“há”) é igual à contracção da preposição “a” com o artigo definido “a” (“à”)? Talvez tudo não passe de distracção do conspícuo relator… Porém, o acórdão vem subscrito pelo plenário do alto pretório, que certa e seguramente o leu e reviu, pois que a certeza e a segurança são o timbre da juridicidade e, por maioria de razão, das decisões judiciais.



Uma nota final (que nada aparentemente tem a ver com o “novo Acordo Ortográfico”). Se eu trocasse o “há” pelo “à”, a minha severa professora do ensino primário, que não era para brincadeiras e não queria saber de “distracções”, aplicava-me acto contínuo, com “c” ou sem “c”, um valente correctivo que me deixava a pão e laranjas! Mas que querem, a velhota dava grande valor à (não “há”) palavra escrita…

Nota: O autor não escreveu o artigo ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.

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