Foi
você que pediu um acordo ortográfico?
Um destes dias, via-se
um adepto do SLB de cachecol aberto, estampado com o seguinte aforismo:
“ninguém pára o Benfica”. O novo acordo ortográfico (AO90) aplicado aos
cachecóis implicaria uma restrição de jogadores naquele clube.
Como se sabe (e isto
não se quer com o ar bafiento dalição), grafia é a representação escrita
de som ou palavra e algo que não implica noções de correcto ou incorrecto, na
mesma relação em que grafia e ortografia não se constituem sinónimos. Porém, se
a escrita é uma convenção (em que nem sempre existe uma correspondência entre
som (fonema) e letra (grafema), não há que esquecer que essa convenção obedece
a regras lexicais e morfológicas que têm, por exemplo, nas palavras cognatas representações
padronizadas. Há também que lembrar que há letras que não representam nenhum
som da língua portuguesa, caso do h, que ocorre apenas por razões
etimológicas – se nos orientássemos por critérios fonéticos, este grafema
simplesmente desaparecia em ocorrência no início de palavra – já no Brasil de
escreve “úmido”. A subsistência de dicionários etimológicos, cujas entradas
fornecem informação sobre a respectiva etimologia, começa a ficar condicionada
pelo AO90.
Acreditar que bastariam
algumas regras para estabelecer padrões prova estar a ser um erro leviano. Dos
compostos, no tocante às locuções, subtraiu-se o hífen, salvo em “algumas
exceções já consagradas”: qual então a diferença morfológica entre cor-de-rosa
e cor de laranja? Qual a razão para que o acento circunflexo de dêmos (1ª
pessoa do plural do presente do conjuntivo) passe a ser facultativo? Porque se
considera facultativo grafar amamos/amámos para o mesmo tempo verbal de
pretérito perfeito? Porquê oscilar entre conservação ou eliminação de c ou p em
sequências interiores, em função de pronúncias cultas? Que fazer às cognatas
antinómicas (egito/egiptólogo/egípcio; vetor/vectorial;setor/sectorial/secção; ação/actante/actancial); noturno/noctívago?
Como explicar a convergência de termos análogos como rutura (ruptuta)/rotura
(formada este por via popular)? Ora, se tudo isto é em nome de um vocabulário
ortográfico comum, estamos bem aviados. Porque ele, por razões
etnolinguísticas, não é factível: “aqui usamos esta palavra, lá aquela…”.
Imagino Luandino Vieira ou o saudoso Craveirinha a gracejarem com isto.
A velha gramática
consagrava, como se sabe, uma série de exemplos que não obedeciam a um critério
severo: basta constatar as regras da acentuação (mais as respectivas
excepções), ou casos como “comboio”. Mas alargar o leque das incongruências e
das excepções (de que o AO90 tem bem consciência) torna-se inconsequente. Daí
os mentores do AO90 se anteciparem a nomeá-las “incongruências aparentes”.
Torna-se igualmente
caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e de
formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada
alguma morfologia etimológica, torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á
“concepção”, “recepção”, etc., coisa esquecida por cá). Não tenho especial
predilecção por “vacas sagradas”, mas quando me acho num universo que me obriga
à disciplina da gramática normativa (leccionação), o impressionismo morfológico
por pecado e omissão parece-me no mínimo desconfortável. E se tudo isto advém da
pretensa lusofonia, é útil que se diga que sou a favor de acordos que não sejam
mera cosmética, mas se materializem em programas de cooperação, leitorado,
incentivo à edição multilateral, errância de escritores, apoio à edição nos
países de menores recursos, desconstrução dos monopólios editoriais, sem jogos
sinuosos de soberania ou de limitação de actuação. Uma lusofonia que não seja a
invenção da lusofonia como catarse e exorcização dos fantasmas imperiais e
colonialistas. Porque esses já não são acordos, senão investimentos. Portanto,
novas roupagens colonialistas.
É essencial não se
julgar ser esta preocupação etimológica algo de que ninguém se lembraria, não
fosse o novo acordo a acordá-la. Parece que de repente todos (como castas
virgens guardiãs do idioma) passámos a preocupar-nos com os efeitos
morfológicos e etimológicos, quando nem nos passaria pela cabeça “pensar as
palavras”. Acontece que é apenas quando nos ferem que lambemos as feridas.
Finalmente, o que
verdadeiramente me move é o facto que considerar, como sempre o disse, o AO90
completamente supérfluo. As relações diplomáticas, equitativamente económicas,
culturais, norteadas pela rectidão, essas sim, são prioritárias. A língua já há
muito existe e todos a entendemos.
Recentemente, Mário de Carvalho
referiu-se à vantagem do uso de todo o tipo de dicionários, como convém, diz, a
escritor que se preze: suponho que pondere o uso do etimológico do José Pedro
Machado. Para quê, afinal, senão como réstia de curiosidade filológica? Sempre
é uma consolaçãozita.
António Jacinto PascoalProfessor
Sem comentários:
Enviar um comentário