quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ninguém para o Benfica


Foi você que pediu um acordo ortográfico?


Um destes dias, via-se um adepto do SLB de cachecol aberto, estampado com o seguinte aforismo: “ninguém pára o Benfica”. O novo acordo ortográfico (AO90) aplicado aos cachecóis implicaria uma restrição de jogadores naquele clube.
Como se sabe (e isto não se quer com o ar bafiento dalição), grafia é a representação escrita de som ou palavra e algo que não implica noções de correcto ou incorrecto, na mesma relação em que grafia e ortografia não se constituem sinónimos. Porém, se a escrita é uma convenção (em que nem sempre existe uma correspondência entre som (fonema) e letra (grafema), não há que esquecer que essa convenção obedece a regras lexicais e morfológicas que têm, por exemplo, nas palavras cognatas representações padronizadas. Há também que lembrar que há letras que não representam nenhum som da língua portuguesa, caso do h, que ocorre apenas por razões etimológicas – se nos orientássemos por critérios fonéticos, este grafema simplesmente desaparecia em ocorrência no início de palavra – já no Brasil de escreve “úmido”. A subsistência de dicionários etimológicos, cujas entradas fornecem informação sobre a respectiva etimologia, começa a ficar condicionada pelo AO90.
Acreditar que bastariam algumas regras para estabelecer padrões prova estar a ser um erro leviano. Dos compostos, no tocante às locuções, subtraiu-se o hífen, salvo em “algumas exceções já consagradas”: qual então a diferença morfológica entre cor-de-rosa e cor de laranja? Qual a razão para que o acento circunflexo de dêmos (1ª pessoa do plural do presente do conjuntivo) passe a ser facultativo? Porque se considera facultativo grafar amamos/amámos para o mesmo tempo verbal de pretérito perfeito? Porquê oscilar entre conservação ou eliminação de c ou p em sequências interiores, em função de pronúncias cultas? Que fazer às cognatas antinómicas (egito/egiptólogo/egípcio; vetor/vectorial;setor/sectorial/secção; ação/actante/actancial); noturno/noctívago? Como explicar a convergência de termos análogos como rutura (ruptuta)/rotura (formada este por via popular)? Ora, se tudo isto é em nome de um vocabulário ortográfico comum, estamos bem aviados. Porque ele, por razões etnolinguísticas, não é factível: “aqui usamos esta palavra, lá aquela…”. Imagino Luandino Vieira ou o saudoso Craveirinha a gracejarem com isto.
A velha gramática consagrava, como se sabe, uma série de exemplos que não obedeciam a um critério severo: basta constatar as regras da acentuação (mais as respectivas excepções), ou casos como “comboio”. Mas alargar o leque das incongruências e das excepções (de que o AO90 tem bem consciência) torna-se inconsequente. Daí os mentores do AO90 se anteciparem a nomeá-las “incongruências aparentes”.
Torna-se igualmente caricato que se faça rasura da etimologia e ela permaneça refém da fala e de formas de articulação volúveis. E constatar que no Brasil será preservada alguma morfologia etimológica, torna a questão ainda mais absurda (lá, dir-se-á “concepção”, “recepção”, etc., coisa esquecida por cá). Não tenho especial predilecção por “vacas sagradas”, mas quando me acho num universo que me obriga à disciplina da gramática normativa (leccionação), o impressionismo morfológico por pecado e omissão parece-me no mínimo desconfortável. E se tudo isto advém da pretensa lusofonia, é útil que se diga que sou a favor de acordos que não sejam mera cosmética, mas se materializem em programas de cooperação, leitorado, incentivo à edição multilateral, errância de escritores, apoio à edição nos países de menores recursos, desconstrução dos monopólios editoriais, sem jogos sinuosos de soberania ou de limitação de actuação. Uma lusofonia que não seja a invenção da lusofonia como catarse e exorcização dos fantasmas imperiais e colonialistas. Porque esses já não são acordos, senão investimentos. Portanto, novas roupagens colonialistas.
É essencial não se julgar ser esta preocupação etimológica algo de que ninguém se lembraria, não fosse o novo acordo a acordá-la. Parece que de repente todos (como castas virgens guardiãs do idioma) passámos a preocupar-nos com os efeitos morfológicos e etimológicos, quando nem nos passaria pela cabeça “pensar as palavras”. Acontece que é apenas quando nos ferem que lambemos as feridas.
Finalmente, o que verdadeiramente me move é o facto que considerar, como sempre o disse, o AO90 completamente supérfluo. As relações diplomáticas, equitativamente económicas, culturais, norteadas pela rectidão, essas sim, são prioritárias. A língua já há muito existe e todos a entendemos.
Recentemente, Mário de Carvalho referiu-se à vantagem do uso de todo o tipo de dicionários, como convém, diz, a escritor que se preze: suponho que pondere o uso do etimológico do José Pedro Machado. Para quê, afinal, senão como réstia de curiosidade filológica? Sempre é uma consolaçãozita.


 António Jacinto PascoalProfessor

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