O Acordo Ortográfico
Dantes, cada país
exercia o direito inalienável de escrever a língua portuguesa como queria. As
variações ortográficas tinham graça e ajudavam a estabelecer a identidade cultural
de cada país. Agora, com o Acordo Tortográfico, a diferença está em serem os
Portugueses a escreverem como todos os outros países querem.
Os Portugueses, no
fundo, assinaram um Pacto Ortográfico que soube a Pato. Ninguém imagina os
Espanhóis, os Franceses ou os Ingleses a lançarem-se em acordos tortográficos,
a torto e a direito, como os Portugueses. Cada país – seja Timor, seja o
Brasil, seja Portugal – tem o direito e o dever de deixar desenvolver um idioma
próprio, Portugal já tem uma língua e uma ortografia próprias. Há já bastante
tempo. O Brasil, por sua vez, tem conseguido criar um idioma de base portuguesa
que é riquíssimo e que se acrescenta ao nosso. Os países africanos que foram
colónias nossas avançam pelo mesmo caminho. Tentar «uniformizar» a ortografia,
em culturas tão diversas, por decretos aleatórios que ousam passar por cima dos
misteriosos mecanismos da língua, traduz um insuportável colonialismo às
avessas, um imperialismo envergonhado e bajulador que não dignifica nenhuma das
várias pátrias envolvidas. É uma subtracção totalitária.
A ortografia
brasileira tem a sua razão de ser, e a sua identidade própria. Quando lemos um
livro brasileiro, desde um «Pato Donald» ao Guimarães Rosa, essas variações são
perfeitamente compreensíveis. Até achamos graça, como os Brasileiros acham
graça à nossa. Tentar «uniformizar» artificialmente a ortografia, para além das
bases mínimas da Convenção de 1945, é da mesma ordem de estupidez que pretender
que todos aqueles que falam português falem com a pronúncia de Celorico ou de
Salvador da Bahia. É ridículo, é anticultural e é humilhante para todos nós. Se
não tivessem já gozado, era caso para mandá-los gozar com o Camões.
As línguas são
indissociáveis das culturas e das histórias nacionais, e elas são diferentes em
todos os países que hoje falam português à maneira deles. A maneira deles é a
maneira deles, e a nossa é a nossa. A única diferença é que Portugal já há
muito achou a sua própria maneira, tanto mais que a pôde ensinar a outros
povos, e é um ultraje e um desrespeito pretender que passemos a escrever como
os Moçambicanos ou como os Brasileiros. Eles são países novinhos. Nós somos
velhinhos. E não faz sentido ensinar os velhinhos a dizer gugudadá, só para que
possam «falar a mesma língua» que as criancinhas.
Dizem que é «mais
conveniente». Mais conveniente ainda era falarmos todos inglês, que dá muito
mais jeito. Ou esperanto. Dizem que a informática não tem acentos. É mentira.
Basta um esforçozinho de nada, como já provaram os Franceses e já vão provando
alguns programadores portugueses. Dizem que é mais racional. Mas não é racional
andar a brincar com coisas sérias. A nossa língua e a nossa ortografia são das
poucas coisas realmente sérias que Portugal ainda tem. É irracional querer
misturar a política da língua com a língua da política.
O que vale é que,
neste mesmo momento, muitos Portugueses – escritores, jornalistas e outros
utentes da nossa língua – estão a organizar-se para combater esta inestética
monstruosidade. Que graça tinha se se fizesse um Acordo Ortográfico e nenhum
português, brasileiro ou cabo-verdiano o obedecesse. Isso sim, seria um acordo
inteligente. Concordar em discordar é a verdadeira prova de civilização.
Miguel Esteves Cardoso
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