terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Vem, Noite - Álvaro de Campos




Ode à noite (excerto)

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso é inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem.

A lua começa a ser real.



Álvaro de Campos


Caracterização da Noite: “Noite antiquíssima e idêntica, / Noite Rainha nascida destronada, / Noite igual por dentro ao silêncio, Noite / Com as estrelas lantejoulas rápidas / No teu vestido franjado de Infinito.”, “(...) soleníssima, / Soleníssima e cheia /  De uma oculta vontade de soluçar,”, (...) Noite silenciosa e extática, / manto branco”.
A noite aparece, assim, como uma entidade eterna, solene e mágica, como algo que seduz e encanta o sujeito poético.

O sujeito poético sente-se triste, desencantado “oculta vontade de soluçar, / Talvez porque a alma é grande e a vida é pequena”, insatisfeito perante as limitações do homem “E só alcançamos onde o nosso braço chega, / E só vemos onde chega o nosso olhar”. Este estado de alma angustiado em face da “inutilidade / Onde vicejo”, condu-lo ao desejo futurista / sensacionista de ser “desfolhado” pela Noite e lançado em todas as direcções (Norte, Sul, Oriente, Ocidente). No entanto, este frenesim emocional redunda num desejo de repouso tranquilo no seio da noite “Vem envolver na noite manto branco / o meu coração...”
Estes sentimentos do sujeito poético face à Noite levam a que esta noite maternal seja também uma imagem da morte, a “cósmica maternidade da morte”.

O poema é um apelo à noite, apostrofada logo de início – “Vem, Noite, antiquíssima e idêntica” – e personificada também – “Vem, sozinha, solene, com as mãos caídas”. Mas este apelo acaba por se transformar num longo diálogo a uma voz. Assim as sucessivas apóstrofes à Noite, o emprego reiterativo do imperativo “vem”, “funde”, “faz”, “apaga”, “desfolha”..., além do predomínio do discurso de primeira pessoa “vejo”, “alcançamos”, nosso”, “vemos”, “nosso”, “me”, “vicejo”, “meu”, “mim”, “eu”... e de segunda pessoa “vem”, “teu”, “vem”, “teu”... revelam a presença da função apelativa.
O sujeito poético considera a Noite “Rainha nascida destronada”. De salientar  as imagens belíssimas: “Noite / Com as estrelas lantejoulas rápidas / No teu vestido franjado de infinito.”

Os recursos expressivos mais marcantes são a utilização anafórica de “Vem”, modo imperativo e função apelativa da linguagem, presentes ao longo de toda a ode, reforçam toda uma série de pedidos que o sujeito poético faz à noite – “Funde num campo teu todos os campos que vejo / Faz da montanha um bloco só do teu corpo, / Apaga-lhe todas as diferenças que de longe lhe vejo / Todas as estradas... / Todas as várias árvores... / Todas as casas...”, como se ela pudesse anular toda a variedade de sensações e sentimentos que experimentou. Finaliza, pedindo-lhe “só uma luz e outra luz e mais outra”, porque uma só luz não lhe chega, ele sente necessidade de diversos estímulos e sensações. A luz funciona como ponto de referência para percorrer a sua vida, uma distância imprecisa e vagamente perturbadora, uma distância subitamente impossível de percorrer.
Neste momento, notam-se já uns laivos de desespero e angústia, criados, possivelmente, por um sentimento de impotência e perplexidade face à sua vida presente. Estes indícios são confirmados na terceira estrofe, que é iniciada com nova apóstrofe à Noite, encarada como a padroeira dos sonhos impossíveis e das esperanças não concretizáveis: “Nossa Senhora / Das coisas impossíveis que procuramos em vão” (vv. 20/21 e seguintes.).
A salientar também a adjectivação expressiva “antiquíssima”, idêntica”, “sozinha”, “solenessima”.
A musicalidade, outra característica deste poema, é conseguida através do recurso à aliteração de sons nasais e fricativos (v), nos versos 6 e 7: “Vem, vagamente, / Vem lentamente...”. Os advérbios de modo (vagamente, lentamente, levemente, serenamente, tranquilamente) deixam adivinhar a necessidade de tranquilidade que a Noite poderá trazer ao sujeito lírico, em oposição aos seus sentimentos sempre em ebulição.
Só a Noite o poderá então aliviar da dor que lhe provoca a sensação de fracasso da sua vida, que não é mais do que uma sucessão de sonhos perdidos: “Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo / E que doem por sabermos que nunca os realizaremos”; que a Noite lhe traga o alívio e o repouso de que necessita: “Beija-nos silenciosamente na fronte / Tão levemente que não saibamos que nos beijam (...)” (vv. 29-30).
Volta a referir esses sonhos nos versos seguintes, considerando-os frutos de árvores de maravilha que têm raiz no antiquíssimo de nós, ou seja, no mais íntimo do ser. O sujeito lírico estima e encoraja esses sonhos – única coisa que lhe resta, afinal.
Mas talvez a serenidade da Noite não seja suficiente para dissipar toda a sua angústia e desespero, o que lhe traz uma oculta vontade de chorar. O sujeito lírico é certamente invadido por uma onda de sentimentos disfóricos, talvez devido à constatação de que a vida e o corpo impõem limites à grandeza de alma que ele sabe possuir e à realização de todos os sonhos que ele agora sabe serem impossíveis de concretizar – “A alma é grande e a vida é pequena” (...).
A invocação seguinte está já imbuída de toda a negatividade – Vem Dolorosa , / Mater Dolorosa das Angústias dos Tímidos / ...das Tristezas dos Desesperados” (v. 44 e seguintes.). A Noite apresenta-se como solução – “Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes” – e o poeta entrega-se a ela numa atitude de renúncia, bem marcada pela expressividade da imagem utilizada – “Vem e arranca-me / do solo de angústia e inutilidade onde vicejo...”. Esta leve insinuação de ideia da Morte é reforçada nos versos seguintes – “Apanha-me do meu solo... / E desfolha-me para teu agrado” – concretizando essa renúncia. O sujeito poético pede então à Noite que o torne múltiplo e o leve para junto dos locais que sempre amou – o Norte, “onde estão as cidades de Hoje”, o Sul “onde estão os mares”, o Ocidente, símbolo do futuro e, finalmente, o Oriente, “a origem de tudo, donde vem o dia e a fé”. Após este pedido, segue-se uma grande construção anafórica, criando um clima de exaltação do Oriente (vv. 67-71), “onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva”.
Na estrofe seguinte, através da metáfora – “Vem e passa a mão pelo dorso da fera / E acalma-o misteriosamente” – e da estranha apóstrofe “Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito”, somos levados a pensar que só a Noite conseguirá acalmar até os sentimentos mais exaltados e violentos do sujeito poético. Ela é, então, um bálsamo, a “enfermeira antiquíssima” das chagas provocadas por todas as fés já perdidas e por tudo o que é falso e inútil.
Novamente uma alusão à morte, desta vez mais explícita – “Vem envolver na noite manto branco / O meu coração” – pedindo o sujeito lírico para ela o levar, já que a morte é encarada como uma saída plausível e até agradável – como se poderá depreender das comparações: “Como uma brisa na tarde leve, como um gesto materno afagando” e dos advérbios de modo serenamente, tranquilamente.
E a noite/morte virá, por fim, mesmo que ninguém a veja entrar ou saiba quando entrou, quando “a lua começa a ser real”.
Resumindo, o conjunto destes recursos expressivos confere ao poema um ritmo embalatório, dormente, um ritmo que envolve o sujeito poético, arrastando-o serena e tranquilamente para o “manto branco e materno da Noite”.

Esta “Ode à Noite” é quase um hino à morte, se a encararmos como metáfora e prefiguração da morte. O sujeito poético está neste poema, “cansado”, sonolento, é alguém que chega ao fim de um percurso de desistência e que se abandona ao “império”, ao domínio da Noite. Esta ode aproxima-se mais da fase abúlica.

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