domingo, 18 de fevereiro de 2018

Porque e por que





Em português europeu, a confusão gráfica entre porque e por que deve-se à dificuldade em distinguir algumas construções. As principais construções passíveis de gerar confusão são as que se apresentam de (1) a (5).

(1) Orações subordinadas causais introduzidas pela conjunção subordinativa causal porqueNão fizemos compras porque não tínhamos dinheiro

(2) Orações coordenadas explicativas introduzidas pela conjunção coordenativa explicativa porqueEles devem ter chegado, porque o cão está a ladrar
A diferença entre as conjunções exemplificadas em (1) e (2), assim consideradas tradicionalmente (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 14.ª ed., Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1998, p. 577 e p. 581), é muito ténue. Em (1) a oração subordinada (porque não tínhamos dinheiro) apresenta uma causa para a oração principal (não fizemos compras), depreendendo-se que o motivo para a ausência de compras foi a falta de dinheiro. Em (2) a oração coordenada (porque o cão está a ladrar) apresenta uma explicação para a enunciação da primeira oração (eles devem ter chegado), não se depreendendo que o motivo de alguém ter chegado foi o facto de o cão ladrar, tratando-se apenas de uma dedução do emissor. Esta distinção pouco nítida reflectiu-se na Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (2004, Ministério da Educação - Departamento do Ensino Secundário, versão online 1.0), entretanto renomeada Dicionário Terminológico pelo Ministério da Educação, que propunha apenas a designação de conjunção subordinativa causal para porque (cf. 1). De acordo com esta classificação, porque é usado para estabelecer uma relação entre uma causa (expressa na oração subordinada) e a sua consequência (expressa na oração principal).
primeira versão da nova terminologia linguística reclassificou ainda o homónimo porque de advérbio interrogativo de causa para pronome interrogativo (o mesmo sucedendo com porquê). Tal reclassificação poderia estar relacionada com o facto de a palavra que já ser considerada tradicionalmente um constituinte interrogativo (ex.: que esperam eles?). Posteriormente, uma revisão dessa terminologia linguística restabeleceu a classificação de conjunção coordenativa explicativa (cf. 2) e de advérbio interrogativo, cujo uso se ilustra em (3).

(3) Orações interrogativas (directas e indirectas) introduzidas pelo advérbio interrogativo porquePorque esperasPerguntei porque esperas
Como no caso de outros constituintes interrogativos, a função de porque em (3) é questionar, neste caso a causa, sendo substituível por qual o motivo de/paraqual a causa de/paraqual a razão de/para. Assim, a pergunta Porque esperas? é parafraseável por Qual o motivo de estares à espera?. A resposta a esta interrogativa directa deve explicitar uma causa, sendo habitualmente introduzida pela conjunção causal referida em (1): - Espero porque o médico ainda não me chamou.

(4a) Orações interrogativas (directas e indirectas) que correspondem a um argumento introduzido pela preposição por seguida do pronome/determinante interrogativo quePor que esperasPor que peças trocaste os copos que recebeste no NatalPerguntei por que esperasNão sei por que peças trocaste os copos que recebeste no Natal
A sequência por que não tem aqui qualquer valor de causa. Efectivamente, na pergunta Por que esperas?, a preposição por pertence à regência do verbo esperar (ex.: tu esperas por alguma coisa) e o pronome interrogativo que corresponde ao argumento nominal do verbo esperar (ex.: tu esperas por alguma coisa). Assim, a pergunta Por que esperas? é parafraseável por Por que coisa esperas?.

(4b) Orações interrogativas (directas e indirectas) introduzidas pela preposição por seguida do determinante interrogativo que com nomes expressos como motivocausarazãoPor que motivo chegaram tardeIndaguei por que motivo chegaram tarde
Nestes casos, a sequência por que tem valor causal pois, ao contrário de (4a), a preposição por não pertence à regência do verbo (ou de outra classe gramatical). As respostas à interrogativa directa Por que motivo chegaram tarde? devem explicitar uma causa, sendo habitualmente introduzidas pela conjunção causal referida em (1): - Porque adormeceram.

(5a) Orações relativas introduzidas por uma preposição argumental por seguida do pronome relativo queChegou a encomenda por que esperava.
Tal como em (4a), em (5a) a preposição por é regida pelo verbo esperar e o pronome relativo que é o seu argumento nominal, sendo a sequência por que substituível por pela qualChegou a encomenda pela qual esperava.

(5b) Orações relativas introduzidas pela preposição por seguida do pronome relativo queExplicaram o motivo por que chegaram tarde.
No caso de (5b), a preposição por não é regência do verbo chegar mas introduz um complemento circunstancial de causa (ex.: chegaram tarde por motivos alheios à sua vontade). Tal como em (5a), a sequência por que é substituível por pelo qualExplicaram o motivo pelo qual chegaram tarde.

Após esta análise, e em jeito de resumo, no português europeu (de Portugal), a grafia porque é usada para explicitar uma causa, sendo substituível por poisjá quevisto quedado queuma vez que (cf. 1 e 2, onde se comporta como conjunção) e quando é substituível por qual o motivo de (cf. 3, onde se comporta como advérbio interrogativo). A grafia por que é usada quando antecede substantivos como razãomotivocausa ou afins (cf. 4b) e quando é substituível pelo sintagma por que coisa (cf. 4a) ou por pelo qual/pela qual/pelos quais/pelas quais (cf. 5a e 5b).

Convém referir que a ortografia é um conjunto de regras convencionadas, e, como tal, artificiais. A prova disso é a discrepância das normas de justaposição e de separação em Portugal e no Brasil, relativamente à escrita de porque/por que. Assim, e ao contrário da ortografia portuguesa, a ortografia brasileira preconiza porque sempre separado nas orações interrogativas (Por que mentiramNão sei por que mentiram.). Tal acontece porque a terminologia gramatical brasileira não considera a existência de um constituinte interrogativo justaposto porque, ao contrário da actual terminologia linguística portuguesa, que o considera um advérbio interrogativo (cf. 3).
O mesmo acontece com porquê/por quê. Em Portugal, escreve-se sempre justaposto quando é advérbio interrogativo (ex.: Porquê complicarDevolveu a mercadoria, não sei porquê.) ou quando é substantivo masculino (ex.: Desconheço o/s porquê/s daquele comportamento.). No Brasil, escreve-se justaposto apenas quando é substantivo; quando é usado em orações interrogativas, é escrito separadamente (ex.: Por quê complicarDevolveu a mercadoria, não sei por quê.).



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