«O truque é simples. Num restaurante de
má fama, um cliente refilão mas pouco astuto queixa-se do bife. Que está mal
passado, que assim não o come nem paga, era o que faltava! O empregado encolhe
os ombros, leva o prato, vira o bife ao contrário e trá-lo outra vez. O cliente
despacha-o, voraz, satisfeitíssimo por ter reclamado. Nada mudou: nem o
restaurante, nem o cliente, nem o bife. A ilusão é uma arma temível, não é?
Vem isto a propósito de uma
carta, já divulgada online (é citada, pelo menos, no weblog do escritor David
Soares, Cadernos de Daath, e está na íntegra em ilcao.cedilha.net), que o
cineasta, escritor e professor António de Macedo (sim, esse mesmo, o de Sete
Balas para Selma, A Promessa ou O Princípio da Sabedoria) enviou por estes dias
ao secretário de Estado da Cultura, sem obter resposta. O tema é o Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa (AO90) e a dúvida ali colocada é pertinente.
Ora leiam:"Segundo o AO90, os Brasileiros podem continuar a escrever (como
sempre escreveram pela reforma ortográfica brasileira de 1943), por exemplo:
acepção, aspecto, conjectura, perspectiva, decepção, detectar, excepcional,
tactear, retrospectiva, percepção, intersectar, concepção, imperceptível,
respectivo, recepção, susceptível, táctico...Em Portugal, com o mesmo AO90,
seremos obrigados a escrever: aceção, aspeto, conjetura, perspetiva, deceção,
detetar, excecional, tatear, retrospetiva, perceção, intersetar, conceção,
impercetível, respetivo, receção, suscetível, tático...Ora, a ideia não era
uniformizar? Será que os Brasileiros não se vão rir quando virem, em escritos
de Portugal, aberrações como deceção, recetivo, perceção...?"No comentário
que escreveu depois, como adenda à carta, António de Macedo conclui: "Ou
seja, iguala-se de um lado (atual, direção, exceção, elétrico, objetivo, etc.)
e desiguala-se do outro, como nos exemplos que citei na minha mensagem ao SEC.
No fundo eu estava perguntando, por outras palavras, o que é que lucrámos com
isto, Portugueses e Brasileiros, perguntando também, implicitamente, se não
seria mais simples deixar tudo na mesma - ao menos, já estávamos familiarizados
com as igualizações e as desigualizações, em vez de termos de aprender outras
novas sem nenhuma vantagem óbvia." Seguindo o raciocínio de António de
Macedo, peguemos num, dois, três, quatro, uma dúzia de livros brasileiros
recentes. Não é difícil ler, a par de ato ou fato (que cá se mantém facto, já
agora, numa deliciosa "ortografia comum"), palavras como aspecto,
perspectiva, caracterizou, facção, respectivamente, etc. Essas mesmas que o
unificador acordo quer que, SÓ EM PORTUGAL, se escrevam aspeto, perspetiva,
caraterizou, fação (é verdade, FAÇÃO!) e respetivamente. É isto um acordo
para unificar a ortografia? Onde está o empregado que serviu o bife, hã? Não
vêem que está mal passado? Não, não vêem. Vão "adotar" a coisa e não
vêem. Mas comem-no, regalados, apesar do truque baixo do bife apenas virado na
cozinha, sem ver outra vez a frigideira, para que todos se deliciem com a
ilusão de uma ortografia unificada. Mas há vozes atentas, vejam lá, que
percebem a impossibilidade de tais mudanças. Leiam-nas: "Há diferenças
intransponíveis dos dois lados do Atlântico, as quais foram acentuadas pelo
tempo." Autor? João Malaca Casteleiro, o pai do aborto, perdão, do acordo
ortográfico (pág. 6 do opúsculo Atual: o que vai mudar na grafia do português,
ed. Texto, 2007).Claro que nada disto interessa, obviamente. Porque, diz-se por
aí, o acordo não pode ser posto em causa, o acordo é um facto. Enganam-se: é um
fato. Um fato feito por alfaiates incompetentes, que não serviriam nem para um
pronto-a-vestir de segunda. E aprovado por quem descuidadamente se veste por
dentro, cuidando que melhor o faz por fora. O que vale é que não faltam por aí
políticos adversários do acordo. Por exemplo: Paulo Portas, Pedro Passos
Coelho, Nuno Crato, Francisco José Viegas. Só é pena é estarem na oposição,
coitados. Senão já tinham ido à cozinha, pegado na frigideira e...»
Nuno Pacheco
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