A "Ode Triunfal", o texto mais representativo desta fase, constitui um elogio explosivo e excessivo da civilização tecnológica. Segundo Fernando Pessoa, Álvaro de Campos passa da fase decadentista para a futurista, por influência de Alberto Caeiro e pelo fascínio da sensação. Só que enquanto Caeiro sente de forma plácida e serena, Campos sente de forma excessiva e conturbada.
Ao tédio e ao desencanto da fase decadentista, sucedem os excessos do sensacionismo e da vanguarda próprios da fase futurista, com o cântico exacerbado e claramente provocatório do progresso e da civilização moderna.
O início da "Ode Triunfal" (vv. 1-32) permitir-nos-á apreender os aspectos essenciais da fase futurista deste heterónimo pessoano:
- identificação da relação existente entre o "eu" e a realidade exterior;
- relação ambígua feita de violência e paixão (1.ª estrofe);
- características do real que envolve e quase submerge o sujeito poético:
- "lâmpadas eléctricas da fábrica";
- "rodas" e "engrenagens";
- "máquinas" e "luzes eléctricas";
- "correias de transmissão", êmbolos"; "volantes".
- ambiente moderno, mecânico, dominado pela técnica e pela evolução industrial;
- visão excessiva e intensa do real, provocando no sujeito poético um estado de quase alucinação marcadamente sensual que começa a desenhar-se na segunda estrofe ("Em fúria fora e dentro de mim", v. 7), intensifica-se na terceira e atinge o clímax na última, conferindo, assim, ao texto a sua faceta provocatória e escandalosamente futurista;
- percepção do real baseado num excesso de sensações - "excesso / De expressão de todas as minhas sensações" (vv. 12-13):
- visuais: luz - "A dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica" )v. 1);
- cinéticas - "Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes" (v.23), "Ó rodas, ó engrenagens!" (v.5);
- auditivas: "...r-r-r-r-r-r-r eterno" (v.5);
- olfactivas: "A todos os perfumes de óleos e calores e carvões" (v.31);
- tácteis: "Tenho os lábios secos" (v.10).
Comparando com o "real" de Caeiro, podemos afirmar que, em Campos, a Natureza é substituída pela visão do mundo moderno e "super-civilizado" ("Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical", "Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!"); com o qual o sujeito poético estabelece uma ligação estranha, eufórica e exaltada, mas revelando, também, um erotismo frenético e quase doentio (Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.", "Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento / A todos os perfumes de óleos e calores e carvões".)
O sensacionismo de Campos inspira-se no de Caeiro visível no modo como um e outro apreendem o real através das sensações. No entanto, enquanto que Caeiro o faz de uma forma calma e tranquila, Campos deixa-se levar pelos excessos característicos do futurismo, bem evidentes na linguagem utilizada:
- onomatopeias - "r-r-r-r-r-r-r eterno!" (v. 5);
- aliterações - "Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando"(v. 24);
- frases exclamativas - "Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!" (v. 26);
- adjectivação expressiva - "Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!" (v. 32);
- interjeições: "Ah" (v. 26)
- repetições - "Canto, e canto o presente" (v. 17);
- enumerações - "(...) e canto o presente, e também o passado e o futuro" (v.17);
- ritmo rápido e excessivo - "Em fúria fora e dentro de mim, / Por todos os meus nervos dissecados fora" (vv. 7-8).
"Saudação a Walt Whitman" - Este longo poema de Campos é um "cântico de libertação" e de identificação com Whitman. Assim, atentemos em:
- o título como síntese da mensagem do poema;
- a enumeração das facetas peculiares de Walt Whitman, reveladoras de um carácter subversivo e provocatório - "Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos, / Concubina fogosa do universo disperso, / Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas";
- auto-caracterização do sujeito poético, tendo como modelo Walt Whitman - "Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te";
- inconformismo e saciedade - "Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar, / E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!";
- ânsia de absoluto - "O espírito que dá a vida neste momento sou EU!";
- estilo torrencial, dinâmico e esfuziante;
- o valor dos empréstimos - insaisissable, souteneurs, engageant.
"Ode Marítima" - Este é o mais longo poema de Campos, considerado por Robert Bréchon como "uma autêntica maravilha de organização", aliando aspectos caracteristicamente futuristas (excessos e provocações), com um tom melancólico e disfórico, anunciador já da fase intimista.
Os aspectos nucleares deste texto são:
- o tom febril, excessivo, sadomasoquista de algumas passagens - "Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares, / (...) Que me rasgueis, mateis, firais! / (...) Arranquem-me a pele, preguem-na às quilhas. / E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!";
- o delírio das coisas marítimas - "Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas, / Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera";
- a exaltação das coisas navais - "E vós, ó coisas navais meus velhos brinquedos de sonho! / Componde fora de mim a minha vida interior!";
- o fascínio das viagens - "Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina / E eu cismo indeterminadamente as viagens."
- a evocação da infância - "Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!";
- o tom intimista e desencantado - "E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira, / Traça um semicírculo de não sei que emoção / No silêncio comovido da minh'alma...".
1 comentário:
Gosto de ler tudo sobre o Poeta.
Fizeste um magnífico post.
Beijo, minha querida amiga.
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