terça-feira, 30 de dezembro de 2014

É só uma linha de alinhavar!


Quando comecei a gatinhar, foi um Deus nos acuda, nada me fazia parar. Havia tanto para explorar, para descobrir! Os armários eram revirados e, se eu não coubesse lá, juntamente, com os tachos e panelas... tudo isso era colocado fora com um grande estardalhaço. Os armários passaram a ser fechados a sete chaves para eu não os despejar vezes sem conta e a minha mãe não os arrumar outras tantas vezes.
A porta de casa estava sempre aberta, pois os meus pais trabalhavam em casa. O meu pai era alfaiate e tratava também dos assuntos da Junta de Freguesia. A nossa casa era uma espécie de repartição pública e uma alfaiataria, uma casa de moda... A minha mãe era costureira, bordadeira, modista e ajudante de alfaiate. Para além disto, os meus pais eram, isso mesmo, meus pais!
A casa depressa perdeu o interesse, tudo era já conhecido! E, com os armários trancados, pouco havia onde me enfiar. A máquina de costura era algo que me atraía, mas os meus pais aperceberam-se logo da forte atracção e do perigo e, enquanto um estava a coser, o outro tomava conta da menina traquina. Não era viável um trabalhar e o outro ficar de olho na criança e os meus pais passaram a usar a máquina, unicamente, quando eu estava a dormir. Mas a máquina era convidativa e eu não descansei enquanto não a fui inspeccionar: aquilo tinha mais graça, quando o meu pai ou a minha mãe lá estavam; a roda girava a toda a velocidade; o pedal subia e descia... Eu mexi e remexi e, por fim, consegui fazer a roda girar e pôr o pedal a mexer e tirar a corrente da roda e entalar-me e desatar numa gritaria infernal e ficar com uma unha minúscula negra. A máquina passou, desde então,  a ter um mecanismo de segurança contra abelhudas! Sem armários, sem máquina e com os cantos da casa mais do que analisados... 
Que fazer depois da sesta? 
Ah! A porta entreaberta, os dois degraus que era necessário subir para atingir um mundo novo... O sol que espreitava, as pessoas que passavam e que saudavam os meus pais, a garotada que brincava na rua, o padre que acenava com a mão...
A porta começou a ser o grande objectivo a atingir! E as minhas deambulações faziam-se agora para o lado contrário. Os armários, a máquina, o quarto, a cozinha... tudo deixou de ter importância. Estava, agora, muito mais interessada no que ficava para lá da porta do sol! E os ensaios começaram! A primeira vez, foram buscar-me quase ao pé do primeiro degrau; a segunda vez, apanharam-me a trepar o degrau; a terceira vez, encontraram-me sentada no segundo degrau, muito quietinha e atenta, a olhar lá para fora... Todas as vezes me davam um raspanete: a menina não vai para ali, a menina fica aqui sentadinha, na manta, a brincar... E eu olhava o meu pai e sorria e ele pespegava-me um beijo na bochecha cor-de-rosa.
Durante uns dias, esqueci a porta e brinquei com os carrinhos de linhas e com as linhas todas emaranhadas e com as bonecas que a minha mãe me fizera e com os meus parcos brinquedos...
Mas o sol espreitou e chamou-me tão insistentemente que eu, nesse dia, não gatinhei, voei... E o voo foi tal, que o meu pai só deu pela minha falta, quando o padre entrou comigo ao colo e...
           Olhem só o que encontrei lá fora...
A minha mãe ia morrendo de susto, o meu pai ficou branco como a cal... E para piorar a situação, chegou a minha avó, nesse exacto momento.
 - Um dia, os ciganos levam a menina. Já não basta deixarem a janela do quarto aberta, enquanto a criança está a dormir!? Agora, deixam-na ir para a rua... Só me faltava mais esta!
O meu pai pegou-me ao colo e ficou a falar com o padre. A minha mãe foi arrumar as coisas que a minha avó lhe trouxera. A minha avó seguiu-a. O padre saiu, O meu pai foi buscar uma linha de alinhavar e prendeu-me com ela à perna da mesa. A minha avó entrou na sala e desatou a ralhar com o meu pai, parece impossível, agora prende-me a menina como se fosse um cão. A minha mãe ocorreu e disse:
         Ó mãe, por amor de Deus, é só uma linha de alinhavar. É só um puxão e a linha parte-se...
      Uma linha de alinhavar que simboliza uma corrente. Está presa a minha netinha como se fosse um animal...
Eu, muito sossegadinha, a brincar com um boneco de trapos, olhava para eles, com uns olhos enormes, e sorria.
A minha mãe voltou ao trabalho, o meu pai voltou à escrita, a minha avó continuava a resmungar entre dentes e... eu fiquei presa, uma tarde inteira, com uma linha de alinhavar, à mesa.


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