sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Eu bem vos disse, eu bem vos disse!


A janela estava entreaberta, a cortina oscilava levemente, e as pálpebras pesavam, pesavam... O sol penetrava puído através daquele véu translúcido, e os olhos teimavam em fechar-se brandamente... Sorria e abria a custo os olhos, uma e outra vez... A luta com o sono terminava finalmente, mas a teia transparente continuava a deixar passar uma luz difusa. Lá fora, o barulho da miudagem ia-se afastando, caminhava para longe... para muito longe... A porta, fechada, filtrava o barulho da máquina, e a voz dos meus pais ia-se diluindo... De repente, nada... Silêncio absoluto! Sonhos cor-de-rosa! Um lugar distante!
A minha avó não tardaria a chegar, não demoraria a espreitar pela porta... Parece um anjinho!
- Não vos disse já mil vezes que devem fechar a janela, enquanto a menina está a dormir? Se alguém entrar, não dão por nada... com o barulho da máquina...
A minha avó tinha um medo louco que me pudessem roubar. Passavam por ali ciganos e, pelos vistos, ela não morria de amores por aquela gente. A verdade é que a ouvi dizer várias vezes que os ciganos me podiam roubar...
- Que disparate, mãe! Eles têm muitos filhos, não precisam de mais!
- Há uma cigana que quando me encontra na rua com a menina, lhe afaga sempre a cabeça, lhe remexe os caracóis louros, e é tão bonita a sua menina, e tem uns olhos tão grandes e bonitos e que boquinha mais perfeitinha... Eu bem puxo a menina para mim... A mulher mete-me medo! Parece que fica hipnotizada a olhar para a tua filha!...
- Ó mãe, mas que embirração é essa com os ciganos? Eles nunca fizeram ou disseram nada de mal. Passam, olham, vão-se...
- Olham de mais... não gosto deles... não confio neles... Custa-vos muito fechar a janela, enquanto a menina dorme?
- Ela gosta de adormecer a olhar para a cortina a abanar...
E a minha avó chegou e espreitou pela porta e perguntou por mim. O meu pai respondeu-lhe, está a dormir. Onde? Na nossa cama, claro! Não está na cama nem no berço nem na alcofa. A minha mãe levantou a cabeça da bainha que estava a fazer. O meu pai disse que a minha avó tinha de pôr os óculos e de parar de brincar com coisas sérias! A minha avó pediu que acabassem com a brincadeira e que lhe dissessem onde estava eu, afinal, a dormir! O meu pai largou as calças que estava a chulear. A minha mãe atirou o vestido para cima da mesa. A minha avó escancarou a porta. Todos se precipitaram para dentro do quarto. A cortina agitava-se timidamente. Os garotos da rua jogavam à bola e gritavam. Lá longe, chiava um carro de bois ou uma carroça. Os meus pais olharam-se aflitos e correram para a janela. A minha avó correu para a porta da rua e perguntou aos miúdos se os ciganos tinham passado por ali. Os rapazes assentiram.  Tinham passado numa carroça. A rapaziada continuou o jogo e a algazarra. A minha avó travou um garoto e questionou-o quase com a cara dela encostada à dele. A menina? Viste a minha neta? Não, não tinha visto. Os ciganos pararam? Não, seguiram na carroça.
- Como sabes? Estavas na brincadeira! Estavam todos... Viram lá alguma coisa!
A minha avó regressou a casa. Os meus pais não queriam acreditar... mas... eu não estava mesmo ali! A minha avó começou a barafustar, eu bem vos disse, eu bem vos disse...
- Temos de chamar a polícia. Ó homem de Deus, faça alguma coisa. – gritou ela, completamente desatinada.

A minha mãe desatou a chorar e... Ó meu Deus, ó meu Deus... E... eu despertei, remexi-me e comecei a choramingar. O meu pai espreitou, levantou o folho da colcha, e lá estava eu debaixo da cama. Tinha caído e, envolta na roupa, deslizara para debaixo da cama e fizera um grande e abençoado sono.

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