19.
1. O Tempo
Os acontecimentos narrados têm de ser contextualizados num determinado espaço e num determinado momento. O tempo não só estabelece a duração da acção como marca a sucessão cronológica dos vários acontecimentos – tempo da história – e os contextualiza historicamente – tempo histórico. É importante distinguir ordem temporal de ordem textual, pois se os acontecimentos se registam numa determinada ordem cronológica – ordem temporal – isso não implica que tenham de ser relatados por essa ordem de sucessão – ordem textual ou tempo do discurso. Quando há um desencontro entre a ordem temporal e a ordem pela qual os acontecimentos são narrados, ou seja, entre o tempo da história e o tempo do discurso, diz-se que há anacronia. Para este desencontro – anacronia – podem contribuir a analepse, ou seja, um recuo no tempo através da evocação e relato de factos passados; a prolepse, ou seja, um avanço no tempo, pela antecipação de acontecimentos futuros. Por outro lado, por vezes, o tempo do discurso é menor do que o tempo da história. Quando o tempo da história não coincide com o tempo do discurso, diz-se que há anisocronia. Para tal, podem contribuir o resumo, quando o narrador conta sumariamente o que ocorreu para depois prosseguir a narrativa de modo a que a estrutura formal e ideológica da mesma seja perceptível; a elipse, quando o narrador omite períodos temporais que são sugeridos ao nível da história; e a isocronia, ou seja, a tentativa de fazer coincidir o tempo do discurso com o tempo da história, visível através do diálogo e da descrição de personagens.
Distingamos o TEMPO DA HISTÓRIA (tempo cronológico ou tempo diegético) e o TEMPO DO DISCURSO (tempo da narrativa).
a) Tempo da História – O tempo diegético ou tempo da história é aquele que se desdobra em dias, meses e anos e que é vivido pelas personagens. Nesta obra, o autor dá-nos referências cronológicas concretas da história de três gerações de uma família, embora não tendo todas o mesmo destaque e refere-se a acontecimentos reais da evolução da sociedade portuguesa dessa época.
É fácil delimitar n’ Os Maias o tempo da história, o qual, como tempo cronológico, é linear e uniforme. A acção d’ Os Maias decorre no século XIX, de 1820 a 1887.
Assim, é fácil identificar-se, embora não com rigor, a altura em que Afonso da Maia, para desgosto de seu pai, Caetano da Maia, miguelista, fora “o mais feroz jacobino de Portugal” e “atirava foguetes de lágrimas à Constituição” (entre 1820 e 1822); é clara a indicação da data de 1875, em que Afonso da Maia e Carlos começaram a habitar o Ramalhete (“A casa que os Maias vieram habitar no Outono de 1875”); a data de “Janeiro de 1877”, em que Carlos e Ega partem para o estrangeiro, também é facilmente identificável (“nos primeiros dias do Ano Novo”); finalmente, surge a última data, a de 1887 (no último capítulo), que marca o reencontro de Carlos e Ega, após o termo da ausência daquele no estrangeiro (“numa luminosa e macia manhã de Janeiro de 1887”).
1820 – 1875 – Breves referências ao absolutismo de Caetano da Maia e à juventude liberal de Afonso; história da educação de Pedro da Maia e de seus amores trágicos, em ritmo rápido de novela.
1875 – 1877 – Acção central: história dos amores trágicos de Carlos e Maria Eduarda, alternando com os episódios de crítica social, em ritmo lento de romance.
1877 – 1887 – Ausência de Carlos no estrangeiro e seu regresso.
b) Tempo do Discurso – N’ Os Maias, a narração dos acontecimentos ao nível do discurso não apresenta a mesma ordem em que estes sucederam ao nível da história.
O tempo do discurso (tempo da narrativa) não é linear como sucede com o tempo da história. O discurso d’ Os Maias começa assim: “A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das janelas verdes, pela casa do Ramalhete…” Se localizarmos esta data (1875) no tempo histórico, notamos que o discurso começa para lá do meio do tempo histórico, isto é, já no começo da acção central do romance. No entanto, após uma breve história do Ramalhete, da sua reconstrução (dez páginas), o discurso volta-se para os tempos mais antigos dos Maias. É assim que, na pág. 13, começa esta longa ANALEPSE: “Esta existência nem sempre assim correra com a tranquilidade larga e clara de um belo rio de Verão”. Com este recuo no tempo, de cerca de sessenta anos, o autor tem por finalidade recuperar a história dos Maias no espaço de três gerações (absolutismo de Caetano da Maia, liberalismo de Afonso e seus exílios, romantismo e tragédia de Pedro da Maia). É sobre a história de Pedro da Maia, sua educação tradicional e amores trágicos que esta analepse incide mais directamente, constituindo como que uma intriga introdutória à intriga central. Dentro desta analepse, encontra-se ainda a formação de Carlos, incluindo os seus estudos e devaneios em Coimbra.
Só na pág. 95 (cap. IV) é que termina esta longa analepse, que, numa perspectiva naturalista, existe em função de Carlos, isto é, tem o fim de explicar os seus antecedentes hereditários: “E então Carlos Eduardo partira para uma longa viagem pela Europa. Um ano passou. Chegara esse Outono de 1875: e o avô, instalado enfim no Ramalhete, esperava por ele ansiosamente.”
Recuperava-se, portanto, aqui o presente da história: Afonso da Maia e Carlos instalados no Ramalhete, o centro onde todos os acontecimentos da trágica história de amor se haveriam de repercutir.
Toda esta analepse, que se desenvolve ao longo dos primeiros quatro capítulos, não pretende explicar os antecedentes familiares de Maria Eduarda, mas apenas de Carlos. É certamente por isso que se opera uma outra analepse (da pág. 506 à 515 – cap. XV) em que Maria Eduarda conta a Carlos pormenores da sua infância, educação e atribulações pessoais. De notar que, enquanto na primeira longa analepse o ponto de vista era do narrador omnisciente, aqui há focalização interna em Maria Eduarda, que conta o que sabe, e só o que sabe, ficando portanto o mistério, que será revelado por Guimarães (o mistério era necessário para manter até ao clímax o segredo da paternidade de Maria Eduarda).
Há ainda outra analepse contida numa carta de Maria Monforte encontrada no célebre cofre trazido por Guimarães, em cujo sobrescrito se lia: “Pertence a minha filha Maria Eduarda”, que acabava de esclarecer o mistério da paternidade desta personagem e que Ega leu perante o espanto de Vilaça.
O narrador omnisciente manteve-se à margem destas revelações feitas por Maria Eduarda, para que não ultrapassem o conhecimento que ela tinha das suas origens, isto é, para que não se revelasse o segredo da sua paternidade senão no momento exacto de uma intriga com características de tragédia.
c) Relação entre o Tempo da História e o Tempo do Discurso – Ao relacionarmos o tempo da história (tempo cronológico) com o tempo da narrativa (tempo do discurso, verificamos que cerca de sessenta anos da vida dos Maias (tempo da história) são narrados em menos de noventa páginas (tempo da narrativa), ao passo que pouco mais de um ano da vida de carlos (de 1875 até ao princípio de 1877 – tempo da história) é narrado em mais de seiscentos páginas (tempo da narrativa).
Conclui-se, portanto, que não há correspondência entre o tempo da história e o tempo da narrativa. Há, pois, ANISOCRONIAS no tratamento do tempo. A anisocronia mais evidente é a desproporção entre os sessenta anos da vida dos Maias (tempo da história) e as cerca de noventa páginas que os cobrem (tempo do discurso). Há tentativas de ISOCRONIAS mesmo na intriga introdutória, por exemplo no largo espaço do discurso atribuído à educação de Pedro, mas sobretudo na intriga principal, em que se atribui um largo espaço do discurso (mais de seiscentas páginas) aos amores de Carlos e Maria Eduarda e aos episódios da vida romântica.
Tanto as anisocronias como as isocronias são perspectivadas sob o ponto de vista do narrador omnisciente: é ele que decide quais os tempos históricos que merecem mais longa cobertura pelo tempo narrativo, ou tempo do discurso.
Como é que o narrador consegue reduzir o tempo narrativo? De duas formas: pelo SUMÁRIO ou resumo e pela ELIPSE. Isto é, os acontecimentos ou são comprimidos (referidos de modo abreviado), como sucede, por exemplo, com a juventude de Afonso, ou são simplesmente suprimidos períodos da história que está a ser narrada, como deixam entender expressões como estas: “Mas esse ano passou, outros anos passaram” (pág. 53); “outros anos tranquilos passaram sobre Santa Olávia” (pá. 85).
E como é que o narrador consegue afrouxar a velocidade narrativa do discurso, isto é, como é que consegue conferir ao tempo do discurso uma duração idêntica à da história, ou seja, como consegue a isocronia?
As cenas dialogadas são um dos processos mais usados para retardar o ritmo narrativo, pois assemelham-se à representação teatral, isto é, à autêntica duração dos episódios. Assim sucede em episódios como o jantar no Hotel Central, as corridas, o sarau do Teatro da Trindade, etc., em que a descrição e o diálogo criam um ritmo narrativo que tende a respeitar o tempo da história (isocronia).
Ao longo do romance são várias as referências a acontecimentos históricos que contribuem para a construção do efeito do real, ou seja, induzem o leitor a aceitar que a “história” d’ Os Maias é tão real quanto os acontecimentos referidos:
“(Afonso atirara) foguetes de lágrimas à Constituição (...)” - a Constituição de 1822.
“A Constituição de 1822 nasceu na sequência da Revolução Liberal de 1820 e é um dos textos mais importantes e inovadores do constitucionalismo português. A lei fundamental foi votada pelas Cortes Extraordinárias e Constituintes, reunidas em 1821 e jurada pelo rei D. João VI. Apesar de muito bem elaborada, teve uma curtíssima vigência em dois momentos distintos: o primeiro vai de Setembro de 1822 a Junho de 1823 (golpe de Estado denominado Vilafrancada) e o segundo inicia-se com a Revolução de Setembro, entrando em vigor de Setembro de 1836 a Abril de 1838.”
In Infopédia
“E no meio desta festança, atravessada pelo sopro romântico da Regeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte (...)” - a Regeneração de 1850.
“(Carlos) lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer (...)” - os filósofos da Geração de 70.
“Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Isto levou logo a falar-se do Assommoir, de Zola e do realismo (...)” - L’Assomoir, romance naturalista de Zola, publicado em 1873.
“Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos (...).” - o fim da escravatura nas colónia portuguesas, decretado em 1869.
É sobretudo através do clima de desencanto, de desilusão generalizada, de constante crítica ao poder e às instituições que a História aparece ao longo do romance, revelando-nos o Portugal decadente e descaracterizado dos finais do século XIX.
d) O tempo psicológico – O tempo psicológico é aquele que exprime a vivência subjectiva das personagens, na medida em que constitui a percepção que estas têm do decorrer do tempo.
O privilégio do ponto de vista de certas personagens, como Carlos e Ega, faz por vezes que o tempo seja como que filtrado pelas suas vivências subjectivas: um ano pode parecer uma eternidade e muitos anos, um momento. É esse tempo psicológico que ressalta de expressões como estas: “Como tudo passa!” (Carlos); “Carlos recordava aquela tarde… Como tudo isto era já vago e remoto!”; “Como tudo passara!” (Ega recordando a alegre casa dos Olivais); “É curioso, só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a minha existência inteira!” (Carlos ao visitar o Ramalhete).
A subjectividade do tempo, manifestada sobretudo por estas duas personagens, reflecte bem o amargo pessimismo que se instala sobretudo no final do romance, naquela cena em que Carlos e Ega, ao visitarem o Ramalhete abandonado, sentem vivamente a nostalgia do tempo perdido: “Como tudo passava!”
De notar que, no desenrolar da intriga central, enredada nos episódios de crítica social, quase não se dá conta da passagem do tempo. Só quando o leitor se apercebe do envelhecimento das personagens (Afonso alquebrado, Carlos mais gordo, Ega careca) é que se dá conta da passagem do tempo.
O tempo apresenta-se, assim, neste romance, como o símbolo do marasmo social, da estagnação, de uma sociedade estática em que o presente é apenas o repisar do passado, sem perspectivas para o futuro.
Como síntese, revejamos, neste esquema, a estrutura interna d’ Os Maias:
· INTRODUÇÃO: introdução da acção, história do Ramalhete, retrato de Afonso.
Tempo: Outono de 1875.
Espaço focado: Lisboa, o Ramalhete.
· ANALEPSE:
a) Juventude de Afonso.
Espaço focado: Lisboa, Santa Olávia, Inglaterra.
b) Infância de Pedro
Espaço focado: Inglaterra, Itália, Lisboa (sobretudo Benfica).
c) Educação, amores e suicídio de Pedro
Espaço focado: Lisboa (Benfica e Arroios), Itália, França.
d) Infância e educação de Carlos
Espaço focado: Santa Olávia.
e) Juventude de Carlos em Coimbra
Espaço focado: Coimbra (Paço de Celas).
f) Viagem de Carlos pela Europa após a formatura
Espaço focado: Inglaterra, Escócia, Milão, etc.
Tempo: toda esta analepse estende-se de 1820 até ao Outono de 1875.
· ACÇÃO CENTRAL: A vida de Carlos após a viagem pela Europa, com especial incidência na sua trágica paixão amorosa.
Espaço focado: Lisboa, com especial incidência sobre o Ramalhete e sobre determinados ambientes, como o jantar no Hotel Central, as corridas de cavalos, o episódio do jornal A Tarde, o sarau do Teatro da Trindade; Olivais, Sintra, etc.
Tempo: do Outono de 1875 a fins de 1876.
· EPÍLOGO: os acontecimentos que se seguiram ao desvendar do segredo, com destaque para o incesto consciente, morte de Afonso e separação de Carlos e Maria Eduarda.
Espaço focado: Lisboa (sobretudo a baixa lisboeta do tempo – do Largo Camões à Avenida da Liberdade), o Ramalhete, etc.
Tempo: de 1877 a 1878 (viagem de Carlos e Ega; de 1878 a Janeiro de 1887 (da fixação de Carlos em Paris até ao seu regresso e estada em Lisboa).
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