O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo --
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Este poema pertence à primeira parte da "Mensagem", em que se aborda a problemática da origem, do princípio ou da fundação de Portugal. Na origem estaria Ulisses, o navegador errante, que, segundo a lenda, teria sido o fundador de Lisboa. A origem estaria no mito. Mas o que é o mito? E porque situar a origem no mito?
"Efabulações mais ou menos complexas, de feição popular, que constituem um verdadeiro tesouro de sabedoria, transitam de geração em geração, sob forma simbólica. Apontam para os caminhos que conduzem a Deus, indicam estádios de iniciação e encerram verdades profundas, inefáveis, os mais profundos e misteriosos tesouros da verdade espiritual, pérolas de beleza tão rara e tão etérea que não suportam ser submetidas ao exame da análise intelectual; são dados à Humanidade pelos grandes Instrutores para a protegerem e encaminharem no seu desenvolvimento espiritual".
Para Fernando Pessoa, Portugal encontrará na sua própria alma "a tradição dos romances de cavalaria, onde passa, próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo (...), a Demanda do Santo Graal. Todas essas coisas, necessariamente dadas em mistério, representam a verdade íntima da alma, a conversação com os símbolos."
"É à luz desta concepção de mito que se pode compreender o oxímoro "O mito é o nada que é tudo": nada, porque, oculto, nada significa; tudo, porque, desvendado, revela a Verdade.
A antítese repete-se em expressões diferentes, de conteúdo semelhante: "sol (...) brilhante e mudo"; "O corpo morto de Deus / vivo e desnudo".
"E Ulisses é, como o sol, um mito brilhante e mudo - um mito da criação. Transformou-se em lenda, empalideceu, deixou de significar, mas "escorre", "fecunda" e "decorre" ocultamente. Em baixo, Portugal, a vida, perdida a transparência do mito, esquecida a verdade que ele transporta, degrada-se, "morre".
A origem da nacionalidade está no Além, ao seu domínio pertencem os gestos arquetípicos dos antepassados que criaram a pátria. Todos os heróis, enquanto vivos, cumprem uma missão de procura e revelação de uma realidade que os transcende. Os actores perdem-se na poeira do tempo, a lenda deturpa-os, a tradição (re)conhece-os, o mesmo povo que os adultera identifica-se com eles.
O desenvolvimento do poema faz-se em três momentos:
- A primeira estrofe em que se apresenta uma definição de mito. Logo no primeiro verso deparamos com uma das características frases lapidares da "Mensagem", para, nos restantes quatro, ser concretizada a sua generalidade e justificado o seu carácter antitético. O mito é um sol brilhante que "abre", isto é, revela os céus, mas é mudo. É "o corpo morto de Deus" tornado vivo e revelado. O mito é luz que abre caminho para o Todo, mas é ao homem que compete a caminhada.
- A segunda estrofe refere-se propriamente a Ulisses ("Este que aqui aportou") e tem, portanto uma feição particularizante. O poeta enquadra a lenda da fundação de Lisboa pelo herói grego dentro dos parâmetros definidos no primeiro verso. A lenda da sua passagem pela costa portuguesa foi/é suficiente para justificar o nome da cidade e, mais do que isso, emprestar solidez e dignidade à sua origem: "Este, que aqui aportou, (...) Sem existir nos bastou. (...) E nos criou".
- A terceira estrofe é uma conclusão. Iniciada pela palavra "assim", define as relações da lenda/mito com a realidade. A lenda é o fermento da realidade, o seu elemento fecundante: "A lenda se escorre / A entrar na realidade, / E a fecundá-la decorre". A lenda é a origem, vem de cima, do alto dos tempos, e, sem ela, "em baixo", a vida, que é "metade de nada, morre".
- na primeira estrofe predomina o presente, porque estamos perante uma definição do mito, algo permanente;
- na segunda estrofe destaca-se o pretérito, porque se evoca a origem, o acto mítico da fundação;
- e na terceira há uma recuperação do relevo do presente, porque se conclui que a lenda é essencial à realidade, é o cerne da continuidade.
1 comentário:
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……..|░░░|☆ Feliz _(♥)_
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