Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...
Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.
Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...
Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)
Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
Álvaro de Campos
O sujeito poético afirma no primeiro
verso que não é cansaço aquilo que sente “Não,
não é cansaço”, reiterando essa afirmação ao longo do poema (2.ª estrofe –
1.º verso, 3.ª estrofe – 1.º verso). No entanto, e talvez um pouco
paradoxalmente, refere que a desilusão se lhe “entranha na espécie de pensar”, sublinha a monotonia da vida (“...é a mesma coisa variada em cópias
iguais”), exprime a angústia perante o mistério e a indefinição que
perpassam nesse “falso cansaço”;
finalmente aceita que, “porque ouve e vê”,
o estado em que se encontra é de cansaço: “Confesso:
é cansaço!…” Assim, podemos afirmar que, progressivamente, o sujeito
poético se deixa envolver / dominar por uma letargia, um estado de cansaço e
desistência progressiva, que o afasta do mundo.
Entre o sujeito poético, os outros e o
mundo há um distanciamento, decorrente da incapacidade de relação; o único
ponto comum é o facto de todos existirem: “É
eu estar existindo/ E também o mundo”. Os outros, os “cegos que cantam na rua”, são apenas aqueles que o sujeito poético
observa, mantendo-se, no entanto, afastado, não se relacionando com eles:
(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz
dela!)
O parêntesis constitui um momento em
que o sujeito poético abandona o tom reflexivo, se volta para o exterior e o vê
como um “formidável realejo”. O
parêntesis é como que um oásis num texto de características claramente
negativas, uma vez que é o próprio sujeito poético que lhe confere uma
conotação positiva. Todo o poema está carregado de negativismo, o sujeito
lírico, embora declare que não é cansaço aquilo que sente, utiliza vocábulos e
expressões de carácter negativo: “desilusão”,
“domingo às avessas”, “feriado passado no abismo”, “um grito”, uma angústia / por sofrer “, “falso cansaço”, “cansaço”.
Simbolicamente, podemos afirmar que a
felicidade só é possível para quem é “cego”,
ou seja, para quem não vê a verdadeira realidade do mundo.
A primeira estrofe inicia-se com a
repetição do advérbio de negação “não”
empregue numa frase reticente, o que revela uma certa indefinição. O discurso
assume um tom claramente metafórico – (“domingo
às avessas / Do sentimento, / Um feriado passado no abismo...”), terminando
a estrofe também com uma frase reticente. O conjunto destes recursos
expressivos, aliado à repetição anafórica presente nos versos 2 e 4, traduz a
tentativa de definir o estado de espírito que domina o sujeito poético.
Na segunda estrofe, temos também a
repetição do advérbio de negação “não” e a construção paralelística, continuando
o sujeito lírico a explicar o seu estado.
Na terceira estrofe, apresenta-se-nos a
pergunta retórica “Cansaço porquê?”, seguindo-se ainda a tentativa de definição
do seu estado de espírito. De salientar nesta estrofe as comparações “Qualquer
coisa como um grito”, “Qualquer coisa como uma angustia”, os paralelismos, as
anáforas, as frases cortadas pelas reticências que revelam a reflexão levada a
cabo pelo sujeito lírico na tentativa de explicar o seu estado de espírito e a ausência de respostas para concretizar essa
definição. Havendo, assim, nestas explicações uma certa indefinição (repare-se,
por exemplo, na antítese “sensação abstracta / vida concreta”, na repetição do
vocábulo “sofrer”, seguido da partícula comparativa “como” e de reticências).
A quarta estrofe apresenta-se entre
parêntesis e é, como foi dito anteriormente, uma espécie de oásis: “Ai” sem
valor negativo, como se o sujeito lírico tivesse pena de não ser ele também
“cego” para poder cantar e ser feliz e ainda os vocábulos “cantam” e
“formidável” . O exterior, a “rua” é um “formidável realejo” (metáfora), onde
os outros cantam, tocam, numa palavra, são felizes (ao contrário do sujeito poético),
porque não se apercebem da realidade que os circunda.
Este poema integra-se na fase abúlica
de Álvaro de Campos, pelo que revela de incapacidade de viver a vida, pelo que
transmite de tédio, de uma certa desistência perante o mundo que o rodeia e os
outros. Nada motiva o sujeito poético, nada lhe interessa, tudo se resume a um
“supremíssimo cansaço”.
2 comentários:
Muito boa análise. Parabéns
Muito boa análise. Parabéns
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