(Des)Acordo Ortográfico separa os “maquisards” dos “vende-pátrias”?
Mosquitos por cordas. De entre as mais patuscas expressões da coloquialidade portuguesa, esta é a que melhor descreve, a meu ver, a nova querela dos universais em que está envolvida a nata dos bem-pensantes do burgo: o Acordo (ou desacordo) Ortográfico.
Uma cena com “tantos ferros, tantos golpes, tanto sangue a espadanar”, como não havia desde a Tomada de Lisboa no livro da (minha) terceira classe e de cujo autor se guardou tão recatado quão misterioso silêncio em matéria de identidade – havia de sobrar para mim.
Ainda nem tinha tomado bem posse do cargo e já me era enviada, pelos serviços comerciais, a carta de um leitor a solicitar o cancelamento imediato, a partir de 1 de Janeiro, da sua assinatura electrónica e a devolução do montante referente aos números que não serão usufruídos. Mais grave do que isso, o leitor despedia-se do DN, deixando de o ler – até que o Acordo Ortográfico de 1990 seja extinto. Interrogava-se o (ex-)leitor: “Como pode o DN adoptar um Acordo Ortográfico pejado de incongruências, facultatividades e péssimas soluções técnicas, denunciado por nove pareceres negativos que várias instituições emitiram ao longo dos anos, nomeadamente, o Departamento de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, a Comissão Nacional da Língua Portuguesa, a Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário, a Associação Portuguesa de Linguística e a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros?” (Texto já vertido nos termos do Acordo Ortográfico.)
Outro leitor, desejando-me felicidades nesta tarefa, pediu os meus “bons ofícios para fazer com que o DN volte a ser escrito em português e abandone o brasilês que o AO nos trouxe”.
Do lado oposto, uma leitora interpelou-me, recordando que o DN aderiu ao acordo que rege agora a escrita do português. No entanto, observou que “a maioria dos vossos cronistas não ‘aderiu’”, o que a leva a interrogar: “Podem as instituições ou indivíduos não aderir a uma legislação nacional se esta não lhes agrada? Eu posso não aderir ao IRS português, vivendo e trabalhando aqui?”
Acrescenta a leitora um segundo argumento em forma de pergunta: “Se um jornal cumpre a norma oficial linguística, podem alguns dos seus escribas ser livres de a cumprirem? E se sim, não deveria o DN transcrever as suas crónicas na norma padrão, por respeito aos seus leitores?”
A leitora, que afirma ter especialização em linguística portuguesa, lembra que “um Acordo Ortográfico não rege uma Língua, nem sequer a escrita, apenas normaliza a ortografia, a parte mais convencional do código”. Além disso, diz a leitora, “a ortografia nada tem a ver com patriotismo (…): a minha mãe sempre escreveu mãe com ‘i’; os meus avós escreveram farmácia com ‘ph’, porque assim lhes ensinaram – e não eram mais patriotas que eu, nem eu mais do que eles…”.
Remata a leitora com uma indisfarçável “bicada”: “Também já observei que a preguiça e o comodismo sempre se disfarçaram com argumentos nobres…”
Por coincidência, esta última carta chegou-me poucas horas depois de também eu ter reparado na profusão de colunistas do DN que “por decisão pessoal não escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico”.
(Peço desculpa de lhes chamar “colunistas” e não “cronistas”, porque sou defensor da tese de que a crónica é um género jornalístico que se suporta num relato – crónica desportiva, tauromáquica, parlamentar, de viagem – e, se muita gente utiliza o termo para designar artigo de opinião, provavelmente o faz por impensado e atávico francesismo. Também tenho direito ao meu quinhão de “patriotismo” e sempre aproveito para homenagear o primeiro dos nossos cronistas, Fernão Lopes…)
Com dúvidas semelhantes às expressas pela leitora, interpelei o director do DN, João Marcelino, querendo saber, nomeadamente, quantos colaboradores – uma vez que essa possibilidade apenas foi conferida a quem não pertence aos quadros da Redacção – teriam feito essa exigência. João Marcelino respondeu que não se tratou de “exigência”, mas de iniciativa da Direcção do jornal que “entendeu, em virtude, até, das posições públicas conhecidas de alguns dos colaboradores (externos) da área de Opinião/Análise, que devia colocar essa possibilidade à consideração de cada um deles. Das respostas obtidas, verificou-se que 13 optaram pela antiga grafia e sete aderiram às regras do Acordo Ortográfico. Este é o ponto da situação neste momento, que não inclui os jornalistas da casa que também escrevem colunas de opinião. Se somarmos esses artigos de gente da casa, pode dizer-se que a percentagem está nos 50%. No caso dos ‘convidados’ (secção Fórum) respeita-se a grafia utilizada no envio dos textos”.
Perguntei também se todos os textos que são publicados no DN passam pelo crivo do sector da Revisão e João Marcelino assegurou “esse é o processo normal” e “são essas as indicações que presidem à feitura do jornal”. No entanto, relativamente aos colaboradores que não escrevem segundo o Acordo Ortográfico, a Revisão “possui uma lista de nomes, por dias, com a indicação da respectiva opção”.
Por bem-fazer mal haver, diria eu. Por gentileza, a Direcção do DN ofereceu aos seus colaboradores externos a possibilidade de verem publicados os seus textos em duas grafias alternativas, mas não estou certo de que previsse a dimensão do número de “insubmissos”. O resultado disso é o DN aparecer aos seus leitores como um jornal que respeita o Acordo Ortográfico na sua produção própria, desde 1 de Janeiro, tal como se havia comprometido há ano e meio – segundo me informou o director – e viu transformado o seu espaço de opinião externa numa trincheira contra o mesmo Acordo Ortográfico.
Tenho assistido – sem grande vibração, diga-se – à troca de opiniões, mais ou menos acaloradas, mais ou menos profundas sobre a questão do Acordo Ortográfico. Descaracterização da língua, submissão ao brasilês, com tudo se argumenta, até com o “matriotismo” obstinado do “foi assim que me ensinou a minha santa professora da escola primária”.
Contra este último argumento entro eu: se eu dissesse que, na véspera de passar a escrever segundo o Acordo Ortográfico, ainda o fazia como mo ensinou a minha santa professora Dona Aspulqueta, ela ressuscitaria só para me levantar em peso pelas orelhas com a força que nunca teve, ou tornaria de novo à vida o meu sagrado professor Coelho da Escola 154, ao Arco do Cego, para me fazer as mãos em bolo com a menina dos cinco olhos com que nunca me tocou. “Onde estão os acentos graves para assinalar vogais abertas em sílabas não tónicas, menino?” (Zás-que-zás, puxa-que-puxa!) “Onde estão os acentos circunflexos a evitar confusões entre pelo e pêlo, maroto? (Queres mais?)”
Pois é, não me venham com fidelidades às nossas professoras porque há muito que as traímos – eu sempre a contragosto – quando aceitámos uma outra reforma ortográfica, que veio de pantufas não sei quando e nos mandou deixar para trás o critério fonético da ortografia, partindo do princípio que “toda gente” sabe pronunciar as palavras, pelo que não é preciso estar com muitos rigores. Essa sim, foi a reforma que desfigurou a nossa ortografia – mas onde estavam os que deviam protestar e me deixaram (ainda hoje) vox clamantis in deserto?
O actual Acordo segue a mesma lógica do outro – o de pantufas – só que é mais fonético, por assim dizer, escrevendo-se as palavras como são pronunciadas. A escrita fica por vezes parecida com a dos Patos Donalds da nossa infância? Que mal tem? Até dá saudades, bem vistas as coisas.
Não creio que se possa falar em descaracterização da língua: as palavras são as mesmas, a construção não foi alterada, o instrumento de raciocínio e de comunicação está intacto. É apenas uma convenção sobre a forma.
“As armas, & os barões aßinalados, / Que da Occidental praia Lusitana, / Por mares nunca de antes navegados, / Passaram, ainda alem da Taprobana, / Em perigos, & guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana. E entre gente remota edificarão / Nouo Reino, que tanto sublimarão.” Assim escreveu Camões, a começar Os Lusíadas. Escreveu? Nem sei. Sei apenas que foi assim que saiu, em 1572, da oficina “em casa de Antonio Gõçaluez”. Estará o nosso Épico a dar voltas na campa por lhe andarmos a “desfigurar” o que escreveu?
Mas já fui mais longe do que queria nesta matéria. Só o fiz um pouco para tentar desdramatizar esta querela. Há porém, aqui, uma questão de fundo que me preocupa mais, nas funções que exerço: o serviço ao leitor – e o respeito pelos jornalistas que são os primeiros servidores do leitor.
Um jornal não pode ter duas escritas, é por isso que tem um serviço de Revisão que, se ainda for como era no tempo em que aqui eu era redactor, tinha de saudável aquilo que Vergílio Ferreira disse um dia de Jean-Paul Sartre: “Um rigor que é quase um rigorismo.” É sua função homogeneizar a ortografia do jornal, segundo as regras da língua e as normas definidas no Livro de Estilo, nomeadamente para a unificação de nomenclatura e toponímia estrangeiras. E quando a Revisão altera um original neste sentido, não está a “desfigurar” a escrita seja de quem for: está a normalizá-la. É esse o serviço ao leitor.
Além disso, esta questão está entrelaçada com concepções quase “patriotísticas”, permita-se-me esta “desfiguração”: parece existir um núcleo rebelde resistente, uma espécie de “maquisards” da ortografia, oposto aos desavergonhados “vende-pátrias” que aceitam submissamente o império do Acordo Ortográfico. É intolerável num jornal. E torna-se insultuoso para os seus jornalistas.
Já houve um tempo para que as pessoas manifestassem as suas ideias sobre esta matéria. Entendeu a Direcção prolongar por mais algum tempo esta dupla ortografia. Perguntei a João Marcelino se estava estabelecido um limite temporal. Respondeu o director do DN: “Parece-me que faz todo o sentido que seja estabelecido esse limite temporal. A Direcção do DN ainda não debateu o assunto mas vai fazê-lo brevemente e ouvir também a opinião do Conselho de Redacção e dos nossos colaboradores que agora optaram por continuar a escrever segundo a anterior grafia.“
Ou segundo o Acordo ou segundo o desacordo. O DN que escolha. Com a brevidade que o serviço ao leitor exige.
Óscar Mascarenhas
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