segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Fernando Pessoa - A dor de pensar


A poética do ortónimo

Arte poética pessoana - A dor de pensar

A procura constante de racionalidade, por parte do ortónimo, leva, no entanto, o poeta a viver uma tragédia íntima que o dilacera: o querer sentir de forma racional. Este drama está explicitado em poemas como:

"Ela canta, pobre ceifeira," - O poema caracteriza o drama interior do sujeito poético por oposição à felicidade da ceifeira, tendo em conta as seguintes dualidades: consciência / inconsciência; felicidade /i infelicidade; euforia /disforia; sentir / pensar.
Num primeiro momento, o sujeito poético evoca o canto da ceifeira, evidenciando:
  • a suavidade;
  • o carácter inconsciente da alegria da voz;
  • a pureza;
  • a harmonia;
  • o contraste entre a dureza da "lida" do campo e a leveza do canto.
Posteriormente, a partir da quarta quadra, o sujeito poético exprime os sentimentos que o canto da ceifeira despertam nele, retomando o seu drama interior:
  • desejo de permuta com a ceifeira;
  • ânsia de ser inconsciente, mas preservando a consciência de o ser;
  • vontade de intersecção - "Ah, poder ser tu, sendo eu!";
  • desejo de dispersão.
O poema sintetiza, assim, a dor resultante do processo de racionalização permanente: ao contrário da ceifeira, o sujeito poético não atinge a felicidade, porque, nele, tudo é pensamento.

"Gato que brincas na rua" - Pessoa parte de uma imagem-símbolo, o gato, para chegar a uma reflexão:
  • a imagem-símbolo é o gato que brinca na rua, de forma instintiva e natural - "Como se fosse na cama";
  • o sujeito poético inveja esse viver instintivo do gato, a sua irracionalidade e, consequentemente, a sua felicidade;
  • a inevitável consciência da fragmentação interior domina o sujeito lírico - "vejo-me e estou sem mim";
  • o processo de auto-análise é permanente - "Conheço-me e não sou eu".
"Cansa sentir quando se pensa." - O poema expõe, uma vez mais, a dor resultante do pensar, presente através de aspectos como:
  • a incapacidade de conciliar o sentir e o pensar - "Cansa sentir quando se pensa";
  • a solidão e a tristeza - "Há uma solidão imensa / (...) Neste momento insone e triste / (...) Pesa-me o informe real que existe";
  • a indefinição - "Em que não sei quem hei-de ser";
  • a constatação da incapacidade de viver - "E não poder viver assim. / (...) Ah, nada é isto, nada é assim!";
  • a incapacidade de relacionamento com os outros e com o mundo - "Mas noite, frio, negror sem fim, / Mundo mudo, silêncio mudo".
"Não sei ser triste a valer" - O sujeito poético refere, através da analogia entre o florir das flores e a inevitabilidade do pensar, a sua dor e angústia. Atente-se em aspectos como:
  • a indefinição - "Não sei ser triste a valer / Nem ser alegre deveras";
  • a constatação de que não sabe ser - "Acreditem: não sei ser.";
  • o prazer de "não sentir" - "Com que prazer me dá calma / (...) Florir sem ter coração!";
  • a identificação entre "florir" e "pensar", porque ambos são superiores à "vontade" das flores e dos homens - "O que nela é florescer / Em nós é ter consciência. / (...) Vamos florir ou pensar.";
  • a inevitabilidade da morte - "Surgem as patas dos deuses / E a ambos nos vêm calcar".

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