quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Fernando Pessoa - A nostalgia de uma infância mítica


No caso da infância, é inegável que Pessoa dela sentia uma grande saudade, mas trata-se de uma saudade, de uma nostalgia imaginada, intelectualmente trabalhada e literariamente sentida como "um sabor de infância triste". O poeta afirma, igualmente, numa carta a João Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931, que a saudade é "atitude literária", símbolo de pureza, inconsciência, sonho, paraíso perdido.
No entanto, o tom de lamento que perpassa nalguns dos seus poemas resulta do constante confronto com a criança que outrora foi, numa Lisboa sonhada, mas ao mesmo tempo real porque familiar, palco dos primeiros cinco anos da sua vida, marcados pela forte relação afectiva com a mãe.
Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância, regra geral, desprovida de experiência biográfica e submetida a um processo de intelectualização. Os poemas que ilustram este fascínio pela infância são:

"Quando as crianças brincam" - A evocação da infância surge como motivo de criação poética:
  • o real (a brincadeira das crianças) como pretexto para uma reflexão introspectiva - "Quando as crianças brincam / E eu as oiço brincar";
  • a infância como um tempo onírico - "E toda aquela infância / Que não tive me vem";
  • a identificação da infância como um tempo de felicidade apenas pressentida;
  • a articulação passado / presente / futuro: o jogo dos tempos verbais - "fui"; "serei"; "sou";
  • a permanência da dualidade pensar / sentir - "Quem sou ao menos sinta / Isto no coração".
"Pobre velha música!" - O ouvir da "Pobre velha música!" faz convergir o passado e o presente:
  • o presente marcado pela nostalgia do passado - "Enche-se de lágrimas / Meu olhar parado."
  • a percepção de dois modos de ouvir - "Recordo outro ouvir-te.";
  • o desejo violento de recuperar o passado - "Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora!";
  • a permanente incapacidade de ser feliz - "E eu era feliz? Não sei: / Fui-o outrora agora." - sublinhada pelo oxímoro.
"O menino da sua mãe" - O sujeito poético parte da imagem de um soldado morto e abandonado no campo de batalha para exprimir o dramatismo de uma vivência familiar:
  • o contraste entre as expectativas da mãe e da criada velha e a realidade;
  • a precocidade da morte;
  • a intemporalidade da situação dramática evocada;
  • a fugacidade dos momentos de felicidade.
"Não sei, ama, onde era," - O sujeito poético evoca o universo simbólico dos contos infantis, dos reis e das princesas para, a partir dele, expressar a saudade de um tempo de felicidade:
  • a simbologia do tempo e do espaço referidos - "Sei que era Primavera / E o jardim do rei...";
  • a estrutura dramática e o desdobramento do sujeito poético presente no diálogo entre um "eu" feminino e a ama;
  • os lamentos presentes no discurso parentético das quatro primeiras estrofes, reveladores da dor de crescer e pensar - "(Filha, os sonhos são dores...) - e da inevitabilidade da morte - "(Filha, o resto é morrer...)";
  • a dor de pensar - "Penso e fico a chorar...";
  • a identificação entre as narrativas infantis e a felicidade - "Conta-me contos, ama... / Todos os contos são / Esse dia, e jardim e a dama / Que eu fui nessa solidão...".



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