"O Fernando, em geral, era muito alegre. Ria como uma criança, e achava muita graça às coisas. Dizia, por exemplo «ouvistaste?» em vez de «ouviste». Quando saía para engraxar os sapatos, dizia-me: «-Eu já venho, vou lavar os pés por fora». Um dia mandou-me um bilhetinho assim: «O meu amor é pequenino, tem calcinhas cor-de-rosa» Eu li aquilo e fiquei indignada. Quando saímos, disse-lhe zangada: « Ó Fernando, como é que você sabe que eu tenho calcinhas cor-de-rosa ou não, você nunca viu...» (tanto nos tratávamos por tu como por você). E ele respondeu-me assim a rir: «Não te zangues, Bebé, é que todas as bebés pequeninas têm calcinhas cor-de-rosa...»
(...) Vivia muito isolado, como se sabe. Muitas vezes não tinha quem o tratasse, e queixava-se-me. Estava realmente muito apaixonado por mim, posso dizê-lo, e tinha uma necessidade enorme da minha companhia, da minha presença. Dizia-me numa carta: «...não imaginas as saudades que de ti sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza...» E mostra-o bem, nesta quadra que me fez:
"Quando passo um dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho
Cobre-me um frio de Janeiro
No junho do meu carinho."
Em Maio de 1920, a Carris entrou em greve por uns dias, e passámos a fazer o percurso de comboio.
Para que o meu pai não soubesse que eu saía com o Fernando, ele apanhava o comboio do Cais do Sodré e eu em Santos. Assim conversávamos até Belém. Não digo «namorávamos», porque o Fernando não gostava, conforme já contei.
Quando acabou a greve, ia buscar-me, à tarde, como de costume e vínhamos de eléctrico para casa, mas como ele achava que o trajecto não era suficientemente longo, dizia a brincar: «E se fingíssemos que nos enganávamos e nos metêssemos num carro para o Poço do Bispo?»
O Fernando era uma pessoa muito especial. Toda a sua maneira de ser, de sentir, de se vestir até, era especial. Mas eu talvez não desse por isso, nessa altura, talvez porque estava apaixonada. A sua sensibilidade, a sua ternura, a sua timidez, as suas excentricidades, no fundo, encantavam-me.
Por exemplo, o Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos. Dizia-me então: «Hoje não fui eu que vim, foi o meu amigo Álvaro de Campos»...Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhado, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé de mim, disse-me: «Trago uma incumbência, minha senhora, é a de deitar a fisionomia abjecta desse Fernando Pessoa, de cabeça para baixo, num balde cheio de água.» E eu respondia-lhe: "Detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto de Fernando Pessoa.» «Não sei porquê», respondeu-me, «olha que ele gosta muito de ti.»
Raramente falava no Caeiro, no Reis ou no Soares.(...)
O Fernando, principalmente quando se encontrava abatido, não acreditava que eu pudesse gostar dele: «Se não podes gostar de mim a valer, finge, mas finge tão bem que eu não perceba.» Ou, então como nesta quadra:
"O meu amor já não me quer
Já me esquece e me desama
Tão pouco tempo a mulher
Leva a prova que não ama."
Um dia, ao passarmos na calçada da Estrela, disse-me :«O teu amor por mim é tão grande, como aquela árvore.» Eu fingi que não percebi. «Mas não está ali árvore nenhuma...»«Por isso mesmo» respondeu-me ele. Outra vez disse-me : «Chega a ser uma caridade cristã tu gostares de mim. És tão nova e engraçadinha, e eu tão velho e tão feio.»
(...)O Fernando era extremamente reservado. Falava muito pouco da sua vida íntima; não tinha sequer o que se chama um amigo íntimo (nesta altura já tinha morrido o Sá-Carneiro, e há até uma carta em que me diz:«Não há quem saiba se eu gosto de ti ou não, porque eu não fiz de ninguém confidente sobre o assunto.»
Com quem ele se dava muito na altura, e a casa de quem ia até jantar uma vez por semana, era o Lobo d´Ávila, que vivia na Praça do Rio de Janeiro, hoje Príncipe Real. De resto, eram só amigos do café.
Há uma frase de Fernando, há várias até, que monstram bem como ele era reservado. «Sinto preciso ocultar o meu íntimo aos olhares.»«Não quero que ninguém saiba o que sinto.» E ainda esta outra : «O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.»
O «namoro» durou assim até Novembro de 1920. A sua última carta data de 29 desse mês. Aos poucos, ele foi-se afastando, até que deixámos completamente de nos ver. E isto sem qualquer razão concreta.
[...]Passaram-se nove anos.
Um dia, o meu sobrinho Carlos Queirós trouxe para casa aquele famoso retrato do Fernando a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (tirado pelo Manuel Martins da Hora) [foto publicada em Dezembro dia 21, poema Guardador de rebanhos]. Trazia uma dedicatória: «Carlos: isto sou eu no Abel, isto é, próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando. Dia 2/9/29» Achei muita graça, como é natural, e disse ao meu sobrinho que gostava de ter uma para mim. O Carlos disse-lhe, e passado pouco tempo ele enviou-me uma fotografia igual com esta dedicatória: «Fernando Pessoa em flagrante delitro.»
Escrevi-lhe a agradecer e ele respondeu-me. Recomeçámos então o «namoro». Isto em 1929. Eu já não trabalhava nessa altura e continuava a viver em casa de minha irmã no Rossio.
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia : «Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado.» Ao mesmo tempo receava não poder dar-me o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»Fernando Pessoa, Cartas de Amor
1 comentário:
Oeeeeeeeeeeeeeeee.........sempre que venho aqui, me deparo com algo interessante e instrutivo.
Bom domingo
Sonia
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