A caminho da escola, a cantar com o rádio, o sol a aquecer-me através dos vidros… Tudo prometia um bom dia de trabalho, pois a boa disposição viajava comigo, acompanhava-me e eu não a deixaria partir… Estava comigo e comigo ficaria…
Deixei o carro um bocadinho longe da escola, porque ainda era cedo, e saí ainda com a melodia límpida a embalar-me os passos.
Eu ia a subir, ele vinha a descer…
- Hei, a escola é para ali, vais enganado… - disse-lhe a sorrir.
- Não, não vou, vou para casa arranjar as coisas e vou fugir… - repondeu-me.
Estaquei à sua frente, olhei-o nos olhos e senti que dizia a verdade, que estava decidido.
- Estás a brincar – balbuciei - vais é já à minha frente para a aula. Não vais faltar à minha aula mesmo nas minhas barbas.
- A professora não manda em mim, acha que vou fazer o que me está a dizer.
- Primeiro vais às aulas, porque é lá que deves estar agora, depois se ainda quiseres fugir é lá contigo. Agora vais comigo para a aula, porque a partir de agora e até as aulas acabarem estás à minha responsabilidade.
- Ó professora, eu tenho de fugir antes de a minha mãe sair do trabalho.
- Tens muito tempo, ela trabalha até tarde.
Esta minha resposta desarmou-o, ele sentiu que eu não estava ali para impedir a sua fuga, só estava a adiá-la umas horas.
Caminhámos os dois, lado a lado, e eu fazia um esforço medonho para não fazer perguntas. Comecei a falar do tempo, do sol que estava quentinho, das nuvens claras que se viam no céu, da música que vinha a ouvir no rádio…
- Professora, não quer saber?
- Eu só quero saber o que me quiseres contar…
- Sabia que desde o Natal que estou a viver com a minha tia?
- Não sabia.
- Eu estava para fugir de casa e a minha tia disse-me que podia ficar com eles lá em casa.
- Então e agora queres ir embora de casa da tua tia?
- Não. A minha mãe exigiu que eu voltasse para casa e eu não quero ir. Ela disse que ia hoje buscar-me a casa da minha tia, se eu não estivesse ainda lá em casa, quando ela voltasse do trabalho. Por isso, tenho de ir buscar as minhas coisas e fugir.
- E o teu pai continua em Espanha? Ele sabe que estás em casa dos teus tios.
- Ele sabe e continua em Espanha, se ele estivesse cá, eu não tinha saído de casa.
- E estás a pensar fugir para onde?
- Não sei, tenho… é… de não estar em casa da minha tia e tenho de ir lá buscar as minhas coisas.
- Mas se gostas de estar com os teus tios, diz isso ao teu pai e pede-lhe que fale com a tua mãe. Ou então, os teus tios podiam falar com o teu pai…
- Não vale a pena, professora!
- Claro que vale, vale sempre a pena!
- Ó professora, se eu lhe der o número da minha tia, fala com ela e diz-lhe para falar com o meu pai.
- Está bem.
O rosto dele floriu num sorriso agradecido.
Chegámos à escola, combinámos telefonar à tia no intervalo, depois de todos os alunos saírem da sala.
A aula correu bem, mas a minha cabeça estava a mil, ia ditando os exercícios para o quadro e ensaiando mentalmente um discurso…
Todos saíram e ele aproximou-se de mansinho.
- Telefona mesmo, professora?
- Diz lá o número…
Falei, falei, falei… No fim, a tia ficou de ligar para me dizer a decisão do pai…
- Agora, tu vais para a aula e eu vou dar apoio a uns alunos. Depois da aula vais ter comigo à sala 19.
- Não tenho cabeça para ir ter Matemática.
- Tens de ir, vai lá.
Vi-o afastar-se com a cabeça enterrada nos ombros, pesada…
A tia telefonou 45 minutos depois, tinha falado com o pai do garoto e estava tudo resolvido. Teria de ir à escola, pois ficara decidido que passaria a ser ela a Encarregada de Educação do Marcelo.
- Professora, então tenho mesmo de fugir, não é?
- Claro que não, já está tudo resolvido.
- A minha mãe deixa-me ficar com os meus tios!?
Assenti.
Agarrou-me e desatou a gritar e a andar comigo à roda: A DT é a maior.
A funcionária do piso apareceu aflita, pois pensou que o miúdo acabasse por me magoar ou por me atirar ao chão. Ele parou e perguntou-me de repente:
- Posso dar-lhe um beijo, professora.
Nem esperou a resposta, depois virou-se para a funcionária e pespegou-lhe um beijo na face.
E largou a correr a cantarolar a mesma canção que embalou a minha chegada à escola. Sorri, o dia começou bem… e… terminou da melhor maneira!
Sem comentários:
Enviar um comentário