domingo, 29 de maio de 2011

Os Maias - Maria Eduarda

37.




Maria Eduarda

No capítulo XV, pág. 508, em analepse, é caracterizada Maria Eduarda (ela própria fala da sua infância, do ambiente em que vivia, para se justificar perante Carlos). A insistência sobre a infância e a juventude, idades em que se forjam as personalidades, e sobre a influência do meio é um elemento que torna esta caracterização (directa) própria do romance naturalista. Mas, o facto de o narrador apenas referir, em discurso indirecto, as palavras de Maria Eduarda, que, autocaracterizando-se, será forçosamente subjectiva, afasta esta caracterização dos moldes do rigor científico naturalista. De qualquer modo, esse relato da sua vida passada é mais uma explicação das suas relações amorosas anteriores à de Carlos do que a explicação dos seus amores trágicos com Carlos.

A caracterização directa que o narrador faz de Maria Eduarda (págs. 156-157), num retrato verdadeiramente clássico (“uma senhora alta, loira… com a sua carnação ebúrnea… com um passo soberano de Deusa, maravilhosamente bem feita…”), é de molde a apresentá-la como uma personagem suficientemente digna para constituir, com Carlos, um par ideal de amores trágicos. E o que é certo é que Maria Eduarda, pela sua actuação ao longo da intriga, confirma, de certo modo, essa dignidade que o retrato sugere.

Assim, é possível surpreender nela um certo aprumo interior, quando, vivendo já com Carlos, vende as suas jóias para não ter de se servir das de Castro Gomes, e quando, no desenlace trágico, desaparece em dignidade silenciosa, despedindo-se de Ega, que lhe comunicou a verdade fatal: “Ela, de pé, moveu de leve o braço num lento adeus. E foi assim que ele, pela derradeira vez na vida, viu Maria Eduarda”.

Maria Eduarda, que, tal como Afonso, nunca se dissolveu claramente no mundo da comédia, é também uma personagem de tipo clássico, talhada para a tragédia.

Concluindo, Eça faz ressaltar nesta personagem a sua enorme dignidade, ao não querer, por exemplo, gastar o dinheiro de Castro Gomes, depois de ligada a Carlos. O seu carácter não surge muito estudado pelo autor, contudo, o que transparece é algo de bom, que cativa o leitor pela sua bondade, ternura, cultura, gosto requintado e dignidade com que assume a situação trágica que a atinge.

“Entravam então no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veio estacar à porta.

Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo à portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa, de pelos esguedelhados, finos como seda e cor de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas.”

Cap.VI

Fisicamente, Maria Eduarda tem parecenças com a sua mãe Maria Monforte.

A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo - mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de seda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliário de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ela recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficara como sua dama de companhia, ia com ela cedo ao Bois num coupé estufo de douairière. Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã caíra sob o jugo dum Mr. de Trevernes, homem perigoso pela sua sedução pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descaiu rapidamente numa boémia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com os seus hábitos saudáveis do convento, encontrava paletós de homens por cima dos sofás: no mármore das consoles restavam pontas de charuto entre nódoas de champagne; e nalgum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro dum bacarat talhado à claridade do sol.”

Cap. XV

Nesta passagem da obra, deparamo-nos com uma caracterização híbrida de Maria Eduarda, isto é, uma caracterização que, ligando-se à estética naturalista do ponto de vista temático, dela se desliga em termos estruturais. No teor da confissão de Maria Eduarda está vigente uma das preocupações da estética naturalista: a influência perniciosa do meio, uma vez que Maria Eduarda quase que responsabiliza os ambientes em que viveu e a companhia da mãe para explicar a sua vida dispersiva e vivida ao sabor de amizades de circunstância. Do ponto de vista estrutural, esta autocaracterização de Maria Eduarda constitui uma ruptura face às normas do naturalismo. Por um lado, as premissas que explicam o comportamento da personagem surgem depois de ele se ter consumado e, por outro lado, não é o narrador a revelar o passado de Maria Eduarda, mas sim a própria personagem



38.


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