O Sentimento de um Ocidental é um poema dividido em quatro momentos: Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, Horas Mortas. Trata-se da reconstituição de um passeio solitário que o sujeito poético faz num sábado de lazer, descrevendo, ao longo do seu passeio, tudo o que vai observando, em especial as pessoas e os espaços em que elas se movimentam.
Este poema, considerado como uma "epopeia às avessas", dá-nos uma visão da cidade como metáfora do Ocidente, paradigma de um pretenso progresso e desenvolvimento.
Ave-Marias
A primeira parte do poema situa-se ao fim da tarde ("ao anoitecer"), à hora em que os sinos das igrejas chamam para a oração vespertina - a ave-maria.
O sujeito poético, à medida que deambula pelas ruas junto ao Tejo, descreve vários espaços citadinos - edifícios em construção, "boqueirões", "becos", "varandas", "arsenais", "oficinas", "hotéis da moda" -, referindo as "personagens urbanas" que neles se movimentam - "carpinteiros", "calafates", "dentistas", "obreiras", "varinas", "um trôpego arlequim", "os querubins do lar", "os logistas". Em relação ao grupo de personagens descrito, é evidente a simpatia solidária que o sujeito poético revela para com as personagens populares, com destaque especial para as varinas que "... embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas" e que trabalham "(...) Nas descargas do carvão, / Desde manhã à noite, (...) / E apinham-se num bairro aonde miam gatas, / E o peixe podre gera os focos de infecção!" A impressão geral que decorre desta primeira descrição da cidade é de que se trata de um espaço soturno e melancólico, pouco luminoso, que apresenta uma "cor monótona e londrina", despertando no "eu" sentimentos contraditórios - "E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!"
Nesta primeira parte do poema, é também nítida a oposição entre o real e a fantasia. Na verdade, face a uma realidade que lhe desperta "um desejo absurdo de sofrer", o sujeito poético anseia partir para outras dimensões, e exprime o seu desejo de evasão:
- para outros espaços reais: "Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! / Ocorrem-me em revista exposições, países: /Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!";
- para outros tempos, outras glórias - "Evoco, então, as crónicas navais: / Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! / Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei jamais!".
Noite Fechada
O sujeito poético continua o seu percurso, observando a realidade que o rodeia, enumerando os novos espaços que observa:
- as cadeias
- o Aljube
- a "velha Sé"
- os andares
- as tascas
- os cafés
- as tendas
- os estancos
- as igrejas
- "as íngremes subidas"
- "o recinto público e vulgar"
- "um palácio em face de um casebre"
- os quartéis
- as "montras dos ourives"
- os magasins
- a brasserie
Surgem, então, novas figuras citadinas, a que o sujeito poético se refere como "uma acumulação de corpos enfezados" - presos, velhinhas, crianças, soldados, as elegantes, as costureiras, as floristas ("E muitas delas são comparsas ou coristas") e os emigrados que jogam dominó.
O tom melancólico e disfórico presente na descrição da cidade não nasce apenas do relato dos espaços e das personagens que neles evoluem, mas também do tipo de sensações empregues pelo sujeito poético para concretizar essa mesma descrição:
- auditivas - "Toca-se as grades, nas cadeias. Som / Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!", "E os sinos dum tanger monástico e devoto.", "... ao riso...";
- visuais - "... ao acender das luzes", "à crua luz";
- térmicas - "Derramam-se por toda a capital, que esfria".
Ao Gás
O deambular progressivo do sujeito poético permite-lhe completar o quadro citadino. Novos espaços e personagens são referidos:
Espaços
- os "passeios de lajedo"
- os "moles hospitais"
- as "lojas tépidas"
- a "catedral de um comprimento imenso"
- o "cutileiro"
- a "padaria"
- as "casas de confecções e modas", com longos balcões de mogno
- as "longas descidas" e as esquinas
- "as impuras"
- as "burguesinhas do Catolicismo"
- "o forjador"
- um "ratoneiro imberbe"
- "a lúbrica pessoa"
- uma "velha, de bandós!"
- "os caixeiros"
- "um cauteleiro rouco"
- o "velho professor (...) de latim"
- a valorização do campo, presente na única nota eufórica desta parte - o "cheiro salutar e honesto a pão no forno" que sai de uma padaria;
- a presença de uma figura feminina que subverte os cânones poéticos da época - "as impuras";
- o anticlericalismo presente na referência ao histerismo das freiras;
- a solidariedade social presente na referência ao facto de o seu "velho professor (...) de Latim" estar transformado num pedinte.
- sensações tácteis - "(...) A noite pesa, esmaga. (...) / Um sopro que arrepia os ombros quase nus";
- olfactivas - "Um cheiro salutar e honesto a pão no forno";
- visuais - "E a vossa palidez romântica e lunar!";
- auditivas - "Da solidão regouga um cauteleiro rouco".
Horas Mortas
A quarta parte do poema corresponde ao momento final do percurso do sujeito poético, percurso esse que se vai progressivamente tornando mais angustiante e fechado.
Assim, estamos no domínio total da noite, as estrelas brilham no céu - "Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras" - e "os guardas, que revistam as escadas, / caminham de lanterna (...)".
Este é também o momento em que as personagens marginais dominam a cidade: as "imorais", os assassinos, os "tristes bebedores", os "dúbios caminhantes" e até os cães, que se transformam em lobos - "E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente, os cães parecem lobos".
É também o momento em que o espaço se torna agressivo para o sujeito poético, essa agressividade está presente:
- no colocar dos taipais e no ranger das fechaduras;
- na consciência de que a cidade é uma prisão, uma antecâmara da morte - "Mas se vivemos, os emparedados. / Sem árvores, no vale escuro das muralhas!..."; "prédios sepulcrais";
- no sentir de um nojo físico pela cidade - "Nauseiam-me (...) os ventres das tabernas".
- evocar a beleza e a serenidade do campo - "Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As notas pastoris de uma longínqua flauta";
- expressar desejos impossíveis ou de difícil realização - "Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!";
- esperar o regresso da grandeza perdida - "Nós vamos explorar todos os continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!"
"O "Sentimento dum Ocidental" é a investigação definitiva de Cesário Verde sobre a cidade. O poema regista as percepções e as impressões de um observador caminhando nas ruas nocturnas da cidade, um narrador que descreve um passeio solitário que não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um processo no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta o mundo simbólico de sombras reais que é a cidade nocturna. A cidade é Lisboa; o sentimento do título é o do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela."
Hélder Macedo, "Nós" - Uma Leitura de Cesário Verde
in Colecção Resumos da Porto Editora
Dúvidas: Avé-Maria ou Ave-Maria?
Embora a expressão “Avé Maria” exprima melhor a forma como as pessoas a pronunciam, há que salientar que a expressão, de origem latina, é Ave, com o sentido de salve, saúde. Por isso, deve escrever-se sem o acento. A propósito ainda desta expressão, deve referir-se que quando serve para designar a oração correspondente, aconselha-se a que esta seja distinguida com hífen (ave-maria) para permitir o uso do plural.
Por exemplo: “Ave Maria cheia de graça”, "Vou rezar uma ave-maria" e “Já rezei três ave-marias.”