domingo, 8 de janeiro de 2017

Cesário Verde - Deambulismo - O Sentimento dum Ocidental



O Sentimento de um Ocidental é um poema dividido em quatro momentos: Ave-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, Horas Mortas. Trata-se da reconstituição de um passeio solitário que o sujeito poético faz num sábado de lazer, descrevendo, ao longo do seu passeio, tudo o que vai observando, em especial as pessoas e os espaços em que elas se movimentam.
Este poema, considerado como uma "epopeia às avessas", dá-nos uma visão da cidade como metáfora do Ocidente, paradigma de um pretenso progresso e desenvolvimento.


Ave-Marias


A primeira parte do poema situa-se ao fim da tarde ("ao anoitecer"), à hora em que os sinos das igrejas chamam para a oração vespertina - a ave-maria.
O sujeito poético, à medida que deambula pelas ruas junto ao Tejo, descreve vários espaços citadinos - edifícios em construção, "boqueirões", "becos", "varandas", "arsenais", "oficinas", "hotéis da moda" -, referindo as "personagens urbanas" que neles se movimentam - "carpinteiros", "calafates", "dentistas", "obreiras", "varinas", "um trôpego arlequim", "os querubins do lar", "os logistas". Em relação ao grupo de personagens descrito, é evidente a simpatia solidária que o sujeito poético revela para com as personagens populares, com destaque especial para as varinas que "... embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas" e que trabalham "(...) Nas descargas do carvão, / Desde manhã à noite, (...) / E apinham-se num bairro aonde miam gatas, / E o peixe podre gera os focos de infecção!" A impressão geral que decorre desta primeira descrição da cidade é de que se trata de um espaço soturno e melancólico, pouco luminoso, que apresenta uma "cor monótona e londrina", despertando no "eu" sentimentos contraditórios - "E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!"
Nesta primeira parte do poema, é também nítida a oposição entre o real e a fantasia. Na verdade, face a uma realidade que lhe desperta "um desejo absurdo de sofrer", o sujeito poético anseia partir para outras dimensões, e exprime o seu desejo de evasão:
  • para outros espaços reais: "Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! / Ocorrem-me em revista exposições, países: /Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!";
  • para outros tempos, outras glórias - "Evoco, então, as crónicas navais: / Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! / Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! / Singram soberbas naus que eu não verei jamais!".
Esta evocação das grandezas passadas aparece logo seguida da referência ao "couraçado inglês" que, no Tejo, ocupa agora o lugar das naus de quinhentos (Cesário Verde era um republicano convicto que via de forma muito crítica a ingerência inglesa na política, sobretudo a colonial, portuguesa. O Ultimatum Inglês data de 1890).


Noite Fechada

O sujeito poético continua o seu percurso, observando a realidade que o rodeia, enumerando os novos espaços que observa:
  • as cadeias
  • o Aljube
  • a "velha Sé"
  • os andares
  • as tascas
  • os cafés
  • as tendas
  • os estancos
  • as igrejas
  • "as íngremes subidas"
  • "o recinto público e vulgar"
  • "um palácio em face de um casebre"
  • os quartéis
  • as "montras dos ourives"
  • os magasins
  • a brasserie
Destes espaços mórbidos, pouco iluminados, desprende-se uma sensação de enclausuramento, de solidão, de pessimismo progressivo - "E eu desconfio, até, de um aneurisma / Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes", "Chora-me o coração que se enche e que se abisma.", "E eu sonho o Cólera, imagino a Febre", "Triste cidade! Eu temo que me avives / Uma paixão defunta!".
Surgem, então, novas figuras citadinas, a que o sujeito poético se refere como "uma acumulação de corpos enfezados" - presos, velhinhas, crianças, soldados, as elegantes, as costureiras, as floristas ("E muitas delas são comparsas ou coristas") e os emigrados que jogam dominó.
O tom melancólico e disfórico presente na descrição da cidade não nasce apenas do relato dos espaços e das personagens que neles evoluem, mas também do tipo de sensações empregues pelo sujeito poético para concretizar essa mesma descrição:
  • auditivas - "Toca-se as grades, nas cadeias. Som / Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!", "E os sinos dum tanger monástico e devoto.", "... ao riso...";
  • visuais - "... ao acender das luzes", "à crua luz";
  • térmicas - "Derramam-se por toda a capital, que esfria".
Nesta segunda parte, face à desolação e à soturnidade do presente, o sujeito poético também evoca o passado ("Assim que pela História eu me aventuro e alargo") através do "severo inquisidor", do "épico de outrora" e da Idade Média.


Ao Gás

O deambular progressivo do sujeito poético permite-lhe completar o quadro citadino. Novos espaços e personagens são referidos:

Espaços
  • os "passeios de lajedo"
  • os "moles hospitais"
  • as "lojas tépidas"
  • a "catedral de um comprimento imenso"
  • o "cutileiro"
  • a "padaria"
  • as "casas de confecções e modas", com longos balcões de mogno
  • as "longas descidas" e as esquinas
Personagens
  • "as impuras"
  • as "burguesinhas do Catolicismo"
  • "o forjador"
  • um "ratoneiro imberbe"
  • "a lúbrica pessoa"
  • uma "velha, de bandós!"
  • "os caixeiros"
  • "um cauteleiro rouco"
  • o "velho professor (...) de latim"
Esta longa enumeração, para além de pormenorizar o retrato da cidade, reitera alguns dos aspectos característicos da poesia de Cesário Verde, como:
  • a valorização do campo, presente na única nota eufórica desta parte - o "cheiro salutar e honesto a pão no forno" que sai de uma padaria;
  • a presença de uma figura feminina que subverte os cânones poéticos da época - "as impuras";
  • o anticlericalismo presente na referência ao histerismo das freiras;
  • a solidariedade social presente na referência ao facto de o seu "velho professor (...) de Latim" estar transformado num pedinte.
Tal como nas duas primeiras partes, o sujeito poético descreve a cidade de modo sensorial, recorrendo a:
  • sensações tácteis - "(...) A noite pesa, esmaga. (...) / Um sopro que arrepia os ombros quase nus";
  • olfactivas - "Um cheiro salutar e honesto a pão no forno";
  • visuais - "E a vossa palidez romântica e lunar!";
  • auditivas - "Da solidão regouga um cauteleiro rouco".
O sujeito poético sublinha que o real é motivo de inspiração poética - "E eu que medito um livro que exacerbe. / Quisera que o real e a análise mo dessem".


Horas Mortas

A quarta parte do poema corresponde ao momento final do percurso do sujeito poético, percurso esse que se vai progressivamente tornando mais angustiante e fechado.
Assim, estamos no domínio total da noite, as estrelas brilham no céu - "Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras" - e "os guardas, que revistam as escadas, / caminham de lanterna (...)".
Este é também o momento em que as personagens marginais dominam a cidade: as "imorais", os assassinos, os "tristes bebedores", os "dúbios caminhantes" e até os cães, que se transformam em lobos - "E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente, os cães parecem lobos".
É também o momento em que o espaço se torna agressivo para o sujeito poético, essa agressividade está presente:
  • no colocar dos taipais e no ranger das fechaduras;
  • na consciência de que a cidade é uma prisão, uma antecâmara da morte - "Mas se vivemos, os emparedados. / Sem árvores, no vale escuro das muralhas!..."; "prédios sepulcrais";
  • no sentir de um nojo físico pela cidade - "Nauseiam-me (...) os ventres das tabernas".
Face a esta cidade opressiva, o sujeito poético apenas pode:
  • evocar a beleza e a serenidade do campo - "Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As notas pastoris de uma longínqua flauta";
  • expressar desejos impossíveis ou de difícil realização - "Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!";
  • esperar o regresso da grandeza perdida - "Nós vamos explorar todos os continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!"
O poema conclui com uma nota claramente disfórica: a cidade é, inevitavelmente, o espaço onde "A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!".



"O "Sentimento dum Ocidental" é a investigação definitiva de Cesário Verde sobre a cidade. O poema regista as percepções e as impressões de um observador caminhando nas ruas nocturnas da cidade, um narrador que descreve um passeio solitário que não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um processo no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta o mundo simbólico de sombras reais que é a cidade nocturna. A cidade é Lisboa; o sentimento do título é o do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela."

Hélder Macedo, "Nós" - Uma Leitura de Cesário Verde

in Colecção Resumos da Porto Editora

Dúvidas: Avé-Maria ou Ave-Maria?

Embora a expressão “Avé Maria” exprima melhor a forma como as pessoas a pronunciam, há que salientar que a expressão, de origem latina, é Ave, com o sentido de salve, saúde. Por isso, deve escrever-se sem o acento. A propósito ainda desta expressão, deve referir-se que quando serve para designar a oração correspondente, aconselha-se a que esta seja distinguida com hífen (ave-maria) para permitir o uso do plural.
Por exemplo: “Ave Maria cheia de graça”, "Vou rezar uma ave-maria" e “Já rezei três ave-marias.”