segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que eu sou e vejo.
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu"?
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa


No poema “Não sei quantas almas tenho” o poeta reflecte acerca de si próprio, tentando responder à questão “Quem sou eu?”.

Na primeira estrofe há uma alternância temporal presente/passado aliada ao advérbio de modo “continuamente”, que expressa a constante fragmentação sentida pelo sujeito poético, ontem, hoje, sempre.

O poeta passa da primeira para a terceira pessoa nos três últimos versos da primeira estrofe, quando usa a generalização “todo(s), toda(s), o(s), a(s), aquele(s), aquela(s)”.

No sexto verso denuncia a angústia que a instabilidade lhe provoca, ou seja, o poeta que é constituído apenas por alma, vive na ânsia de se encontrar; por isso, vive sem “calma”, sem repouso.

Nas duas primeiras estrofes, salienta a fragmentação do sujeito poético “Não sei quantas almas tenho. /Cada momento mudei. /Continuamente me estranho.” e “Torno-me eles e não eu.”; 

O seu desconhecimento em relação a si próprio “Cada momento mudei. / Continuamente me estranho. / Nunca me vi nem achei.”; 

O sentimento de despersonalização “Torno-me eles e não eu. / Cada meu sonho ou desejo / é do que nasce e não meu.”; 

O seu papel de “espectador” de si “Sou minha própria paisagem, / assisto à minha passagem”; 

A sua constante inadaptação “Diverso, móbil e só, / não sei sentir-me onde estou.”.

Na segunda estrofe, o poeta volta a centrar-se em si próprio utilizando uma tripla adjectivação para se autocaracterizar “Diverso, móbil e só”. Aponta, uma vez mais, para a multiplicidade do sujeito poético “Diverso”, definido como um ser volúvel e inconstante “móbil” e salientando a sua solidão “”.

A locução “Por isso” assume o carácter explicativo/conclusivo em relação às duas estrofes anteriores. O sujeito poético, tendo tomado consciência da divisão do seu “eu”, do seu auto desconhecimento, sente-se um estranho (“alheio”) em relação a si próprio. Olha para as “páginas” da sua vida como quem lê um livro que outrem escreveu, chegando a pôr em dúvida os seus próprios sentimentos – “o que julguei que senti”.

O sujeito poético sinaliza versos em que se define como um ser sem passado nem futuro “o que segue não prevendo, / o que passou a esquecer.

Os dois últimos versos são um desfecho lógico para o poema sendo “alheio” à forma como a sua vida se desenrola, não passando de um “espectador” que assiste à sua “passagem”, o sujeito poético não poderia tão pouco redigir notas à margem no “livro” da sua vida. O último verso encerra a resposta à interrogação retórica do verso anterior: alguém superior ao próprio sujeito comanda a sua vida.


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