Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que eu sou e vejo.
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu"?
Deus sabe, porque o escreveu.
Fernando Pessoa
No poema
“Não sei quantas almas tenho” o poeta reflecte acerca de si próprio, tentando
responder à questão “Quem sou eu?”.
Na primeira
estrofe há uma alternância temporal presente/passado aliada ao advérbio de modo
“continuamente”, que expressa a constante fragmentação sentida pelo sujeito
poético, ontem, hoje, sempre.
O poeta
passa da primeira para a terceira pessoa nos três últimos versos da primeira
estrofe, quando usa a generalização “todo(s), toda(s), o(s), a(s), aquele(s),
aquela(s)”.
No sexto
verso denuncia a angústia que a instabilidade lhe provoca, ou seja, o poeta que
é constituído apenas por alma, vive na ânsia de se encontrar; por isso, vive
sem “calma”, sem repouso.
Nas duas primeiras
estrofes, salienta a fragmentação do sujeito poético “Não sei quantas
almas tenho. /Cada momento mudei. /Continuamente me estranho.” e “Torno-me
eles e não eu.”;
O seu
desconhecimento em relação a si próprio “Cada momento mudei. /
Continuamente me estranho. / Nunca me vi nem achei.”;
O
sentimento de despersonalização “Torno-me eles e não eu. / Cada meu sonho
ou desejo / é do que nasce e não meu.”;
O seu papel
de “espectador” de si “Sou minha própria paisagem, /
assisto à minha passagem”;
A sua
constante inadaptação “Diverso, móbil e só, / não sei sentir-me onde
estou.”.
Na segunda
estrofe, o poeta volta a centrar-se em si próprio utilizando uma tripla
adjectivação para se autocaracterizar “Diverso, móbil e só”.
Aponta, uma vez mais, para a multiplicidade do sujeito poético “Diverso”,
definido como um ser volúvel e inconstante “móbil” e salientando
a sua solidão “só”.
A locução “Por
isso” assume o carácter explicativo/conclusivo em relação às duas
estrofes anteriores. O sujeito poético, tendo tomado consciência da divisão do
seu “eu”, do seu auto desconhecimento, sente-se um estranho (“alheio”) em
relação a si próprio. Olha para as “páginas” da sua vida como quem lê um livro
que outrem escreveu, chegando a pôr em dúvida os seus próprios sentimentos – “o
que julguei que senti”.
O sujeito
poético sinaliza versos em que se define como um ser sem passado nem futuro “o
que segue não prevendo, / o que passou a esquecer.”
Os dois
últimos versos são um desfecho lógico para o poema sendo “alheio” à forma como
a sua vida se desenrola, não passando de um “espectador” que assiste à sua
“passagem”, o sujeito poético não poderia tão pouco redigir notas à margem no
“livro” da sua vida. O último verso encerra a resposta à interrogação retórica
do verso anterior: alguém superior ao próprio sujeito comanda a sua vida.