Não
nasci aqui. Não nasci nesta casa. O meu pai era Presidente da Junta, alfaiate e
sacristão e entendeu fazer desta aldeia, desta casa, da nossa casa, o local do
meu nascimento. A minha mãe era costureira, bordadeira e mantinha a igreja
limpa, encerada e perfumada com mil flores dispostas em jarras. Os meus pais
trabalhavam em casa e na igreja.
O
meu irmão quase nasceu no táxi. O meu pai nem precisou de decidir o local de
nascimento do meu irmão, porque ele nasceu logo ali, em casa, mesmo antes do
táxi chegar. Sempre foi muito apressado...
o meu irmão... e ainda é!
O nosso
espaço era a casa, a estrada em frente e a igreja com um adro enorme à volta
cheio de árvores frondosas e uma quantidade de campas rasas onde os defuntos
dormiam o sono eterno. Na altura, não percebia muito bem o que era isso do sono
eterno e também não entendia porque se dormia esse sono ali, debaixo de lajes
numeradas. Um dia perguntei à minha mãe se, quando as pessoas do sono eterno
acordavam, não ficavam admiradas de não despertarem em casa, na cama, como toda
a gente. A minha mãe ignorava e eu insistia sem êxito.
O
meu irmãozito e eu tentávamos passar sem pisar as lajes para não acordarmos as
pessoas... O meu irmão achava que as pessoas tinham as suas casas ali por
baixo. Que escuro deveria ser lá em baixo! Para dormir era bom o escuro! Mas,
que faziam quando acordavam do sono eterno? A minha mãe ria-se com um riso
pequenino, pequenino assim como nós!
Não
me lembro muito bem da nossa casa. Tinha um quarto, talvez mais. Só me lembro
de um quarto e da janela aberta com a cortina a dançar ao sabor da brisa, tinha
uma casa de jantar com uma mesa enorme, de alfaiate, cheia de réguas de madeira e esquadros, de tesouras enormes e giz... onde o meu pai riscava,
talhava, cortava os fatos feitos por medida. Um guarda-loiça cheio de copos
brilhantes, faiscantes, e louça muito bonita e taças de vidro colorido... Havia, com certeza, mais mobília, mas não consigo relembrar. No Inverno, havia sempre uma braseira no meio da casa para aquecer o ambiente...
Havia a cozinha e havia o quintal e as capoeiras
das galinhas, as coelheiras dos coelhos e o pequenino estábulo da ovelha.
Morava também ali um porquinho cor-de-rosa. Para mim e para o meu irmãozito,
todos éramos uma família. Todos os animais eram baptizados: a Branquinha e a
Pedrês eram as galinhas e punham ovos e chocavam-nos e nasciam pintainhos. O
Esporão era um galo colorido, muito emproado, lindo, que cantava todas as
manhãs para acordar a aldeia toda. Passeava-se pelo quintal, muito senhor do
seu bico, era muito corado e dormia no cimo do poleiro de olho nas galinhas. A
ovelha Mila balia docemente e deixava que lhe dessemos a comida à boca. O porco
Manuel era um molengão e passava o tempo a comer abóboras, beterrabas e couves
e a beber grandes goladas de água e a dormir a sesta. Não podíamos brincar com o Manuel. Um irmão
dele tinha comido um braço à Maneta, coitada. O meu pai dizia que os porcos não
eram de confiança e não nos deixava aproximar dele. A Pedrês andava a chocar
ovos e nós, todos os dias, íamos espreitar e palpar os ovinhos quentinhos.
Tinha dez ovos. Se vingassem, dizia a minha avó, teríamos dez pintainhos fofinhos e amarelinhos. O meu
irmão queria dar logo um nome aos pintos, mesmo ainda dentro dos ovos. A São,
uma amiga da mãe, dizia que não podia ser, que dava azar. Quando nascessem é
que era e mesmo assim, às vezes, aconteciam desgraças e os pobres morriam e era
uma tristeza. Os pintos começaram a furar a casca, a minha mãe chamou-nos para
vermos o milagre da criação e da sobrevivência... Lá estava um buraquinho e a mãe, com a unha, abria um
bocadinho mais e quando o buraco já estava grandinho, a mãe puxava o pintainho
pela cabeça molhada e deixava-a de fora... Por fim, os pintos felpudos brancos
e amarelos deixaram as cascas de lado e piavam. O meu irmão agarrou um
animalzinho trémulo com as suas mãozinhas minúsculas e deu beijinhos ao
pintainho e apertou-o contra o peito... Era tamanha a ternura que o animalzinho
estrebuchou e deitou as tripas finas pelo ânus. Adormeceu, dizia baixinho o meu
irmão, deitando o bichinho no ninho. E saía a correr para contar à mãe que o
Paulinho estava a dormir. A dormir o sono eterno!
Muitos
pintos morreram de excesso de carinho meu e do meu irmão. Sobreviveram cinco: A
Maria, o José, a Fátima, o João e a Joana.
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