domingo, 28 de dezembro de 2014

Ruça de mau pêlo


A minha mãe, quando chegou a hora do meu nascimento, mudou-se de armas e bagagens para casa da minha avó. Era a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira neta, a primeira afilhada, a primeira bisneta, a primeira, a primeira, a primeira...  O quarto tinha sido devidamente preparado, limpo, desinfectado... Ao lado da cama da minha mãe, em cima de uma cómoda, estava a alcofinha mais bonita do mundo, toda enfeitadinha de folhos e folhinhos, de nervuras e de nervurinhas, de laços e de lacinhos... Ao lado, as roupinhas feitas pelos meus pais com todo o carinho e amor... Tudo pequenino, tudo muito fofo, tudo com muito gosto...
A minha avó estava mais contente do que a minha mãe, aliás, todos estavam mais felizes do que a minha mãe. Era a minha mãe a única ali que tinha dores! O meu pai andava de um lado para o outro, enervado, aflito e a suspirar. Parecia que era ele que ia parir. A minha mãe, já farta daquela corrida pelo quarto, já com a cabeça à roda de tanto olhar o meu pai às voltas e, antes que ele desgastasse mais o chão, mandou-o sair dali... O meu pai foi, mas foi amuado. A minha tia escolhia a roupa que eu deveria vestir e perguntava à minha mãe se concordava... A minha mãe exasperava com a falta de sensibilidade da família que, como era fim-de-semana, se juntara em casa da minha avó e teimava em perguntar, vezes sem conta, se ela estava bem. Dadas as circunstâncias, estava bem, não podia estar melhor! O meu avô sentou-se à mesa da cozinha com um garrafão de vinho, de cinco litros, para comemorar o nascimento do primeiro neto e ia perguntando se faltava muito. A minha avó arreliava-se e bufava e parecia quase uma gata assanhada, pronta para atacar o meu avô, à unhada... O meu avô olhou-a com aqueles olhos muito azuis a piscarem nervosamente e achou melhor calar-se de uma vez... mas... primeiro pediu ao meu pai que se sentasse ali e que parasse de andar às voltas... A criança é que manda... quando achar a hora, sai disparada e desata numa gritaria nunca vista! Eu já cá pus três fora, acrescentou o meu avó muito entendido no assunto. A minha avó fulminou-o com o olhar e a paz chegou, finalmente... 
Só a minha avó andava de um lado para o outro, num corre-corre, do quarto para a cozinha e da cozinha para o quarto. E anunciou de repente: alguém vai chamar a ti Maria parteira? O meu pai deu um pulo do banco em que estava sentado e vestiu o casaco e ia já a correr, quando a minha tia lhe gritou: ó homem de Deus, onde é que vai? Ora que pergunta mais idiota, pensou o meu pai, olhando a minha tia como se ela fosse um ET louro de olhos azuis! Por acaso, sabes onde ir buscar a parteira? O meu pai estacou com os olhos muito abertos, muito verdes... A minha tia deu-lhe o braço e partiram a voar rua abaixo. A parteira chegou. Os meus avós paternos chegaram com os filhos que ainda viviam sob a asa deles... E a vizinha apareceu também...
Os meus avós paternos sempre me pareceram pouco carinhosos, não eram nada de emoções fáceis, de uma lágrima no canto do olho.... Tanta coisa por causa do nascimento de uma criaturinha de Deus! Eles tinham tido sete filhos, sete!... Era algo normal: ter filhos. Um filho era um acontecimento, mas um acontecimento pequenino, do tamanho da criança que ia nascer. O meu avô materno convidou o meu avô paterno para a mesa, para procederem brevemente à comemoração... O meu avô sorriu e ia para se sentar todo lampeiro à mesa, quando o olhar da mulher o atravessou como se fosse a mais mortífera das espadas... O meu avô recompôs-se e declinou o convite muito delicadamente. Estes meus avós eram uns senhores, pessoas de posses, pessoas instruídas que educaram com esmero os filhos, deram-lhes tudo, tudo... menos doses avultadas de carinho. Era a minha opinião! Nunca senti neles aqueles acessos de ternura, nunca os considerei uns verdadeiros avós: nunca brincaram connosco, nunca tiveram um gesto de carinho... Às tantas, devem ter esgotado todo o mimo com os filhos... sim, meiguice para sete... não devia ser fácil... Os meus avós maternos eram comerciantes e mais humanos: contavam histórias, brincavam connosco, davam-nos guloseimas... Só me lembro de um episódio da minha avó paterna que denunciou que ela lá no fundo, no fundo... se importava... gostava de nós. Eu queimei-me na braseira (depois, conto-vos!) e a minha avó meteu-se ao caminho e foi a pé da Benedita à Alvorninha só para me ver e fez isso várias vezes... até eu ficar boa.
E, chegada a parteira, que se enfiou no quarto com a minha avó... Eu, já segura do que estava prestes a acontecer, decidi finalmente, algo a contragosto,  sair daquela zona de conforto por onde andei cerca de nove meses. Nasci meio negra e a fazer o maior berreiro, num protesto bem audível. Irrompeu pelo quarto toda a família para ver a dita criaturinha de Deus. Entre é uma menina, ah, que bonitinha, tão lourinha, tão perfeitinha... surgiu o vozeirão do meu tio e padrinho: é ruça, ruça e de mau pêlo! A minha tia e madrinha perguntou-lhe logo o que tinha ele contra as ruças e contra o pêlo delas, que pela boca morre o peixe, que cá se fazem, cá se pagam, que a justiça tarda... mas não falha... O meu tio ouvia, ouvia... e nada dizia... Estava atónito com a reacção da minha bonita tia ruça e de mau pêlo, pelo menos na venta!... E a discussão era para continuar em mono, se a parteira não tivesse sentenciado: discussões aqui... não e, apontando a porta, pôs tudo na rua. Até o meu pai, mais parecendo um cachorrinho abandonado, enfiou o rabo entre as pernas para sair, quando a ti Maria o travou: o senhor vai para ao pé da sua filha e da sua mulher... Ele foi com o maior sorriso do mundo sentar-se à nossa beira. Com uma mão afagava a mais pequenina mãozinha do mundo e com a outra penteava as sobrancelhas da minha mãe e delineava-lhe os lábios, à vez.

A discussão entre os meus futuros padrinhos continuou lá fora: ela não podia admitir que aquele filho da mãe chamasse ruça de mau pêlo à sua afilhada linda só porque tinha levado alguma tampa de alguma loura ou ruça ou lá o que quer que fosse... E... foi tal a contenda que, passados alguns meses, quando ao meu padrinho lhe nasceu o seu primeiro filho, este veio com o cabelo todo branco e todo no ar. O meu tio bem tentava acachapar o cabelo do filho, mas este espetava-se, apontando para o céu. Este cabelo vai cair todo e vai nascer-lhe um cabelo negro como o de toda a família, sentenciava. Mas o cabelo não caiu nem escureceu e ainda hoje o meu primo é dono de um cabelo quase branco e espetado como os picos de um porco-espinho. A minha tia exultou e ainda hoje conta a história com algumas pinceladas de fina malvadez. Ruça de mau pêlo, hein! E o filho dele é o quê... albino?, e aquele cabelo sempre no ar?... Justiça divina!

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