A
minha mãe, quando chegou a hora do meu nascimento, mudou-se de armas e bagagens
para casa da minha avó. Era a primeira filha, a primeira sobrinha, a primeira
neta, a primeira afilhada, a primeira bisneta, a primeira, a primeira, a
primeira... O quarto tinha sido
devidamente preparado, limpo, desinfectado... Ao lado da cama da minha mãe, em
cima de uma cómoda, estava a alcofinha mais bonita do mundo, toda enfeitadinha
de folhos e folhinhos, de nervuras e de nervurinhas, de laços e de lacinhos...
Ao lado, as roupinhas feitas pelos meus pais com todo o carinho e amor... Tudo
pequenino, tudo muito fofo, tudo com muito gosto...
A
minha avó estava mais contente do que a minha mãe, aliás, todos estavam mais
felizes do que a minha mãe. Era a minha mãe a única ali que tinha dores! O meu pai
andava de um lado para o outro, enervado, aflito e a suspirar. Parecia que era
ele que ia parir. A minha mãe, já farta daquela corrida pelo quarto, já com a
cabeça à roda de tanto olhar o meu pai às voltas e, antes que ele desgastasse
mais o chão, mandou-o sair dali... O meu pai foi, mas foi amuado. A minha tia
escolhia a roupa que eu deveria vestir e perguntava à minha mãe se
concordava... A minha mãe exasperava com a falta de sensibilidade da família
que, como era fim-de-semana, se juntara em casa da minha avó e teimava em
perguntar, vezes sem conta, se ela estava bem. Dadas as circunstâncias, estava
bem, não podia estar melhor! O meu avô sentou-se à mesa da cozinha com um
garrafão de vinho, de cinco litros, para comemorar o nascimento do primeiro
neto e ia perguntando se faltava muito. A minha avó arreliava-se e bufava e
parecia quase uma gata assanhada, pronta para atacar o meu avô, à unhada... O
meu avô olhou-a com aqueles olhos muito azuis a piscarem nervosamente e achou
melhor calar-se de uma vez... mas... primeiro pediu ao meu pai que se sentasse
ali e que parasse de andar às voltas... A criança é que manda... quando achar a
hora, sai disparada e desata numa gritaria nunca vista! Eu já cá pus três fora,
acrescentou o meu avó muito entendido no assunto. A minha avó fulminou-o com o
olhar e a paz chegou, finalmente...
Só a minha avó andava de um lado para o
outro, num corre-corre, do quarto para a cozinha e da cozinha para o quarto. E
anunciou de repente: alguém vai chamar a ti Maria parteira? O meu pai deu um
pulo do banco em que estava sentado e vestiu o casaco e ia já a correr, quando
a minha tia lhe gritou: ó homem de Deus, onde é que vai? Ora que pergunta mais
idiota, pensou o meu pai, olhando a minha tia como se ela fosse um ET louro de
olhos azuis! Por acaso, sabes onde ir buscar a parteira? O meu pai estacou com
os olhos muito abertos, muito verdes... A minha tia deu-lhe o braço e partiram
a voar rua abaixo. A parteira chegou. Os meus avós paternos chegaram com os
filhos que ainda viviam sob a asa deles... E a vizinha apareceu também...
Os
meus avós paternos sempre me pareceram pouco carinhosos, não eram nada de
emoções fáceis, de uma lágrima no canto do olho.... Tanta coisa por causa do
nascimento de uma criaturinha de Deus! Eles tinham tido sete filhos, sete!...
Era algo normal: ter filhos. Um filho era um acontecimento, mas um
acontecimento pequenino, do tamanho da criança que ia nascer. O meu avô materno
convidou o meu avô paterno para a mesa, para procederem brevemente à
comemoração... O meu avô sorriu e ia para se sentar todo lampeiro à mesa,
quando o olhar da mulher o atravessou como se fosse a mais mortífera das
espadas... O meu avô recompôs-se e declinou o convite muito delicadamente.
Estes meus avós eram uns senhores, pessoas de posses, pessoas instruídas que
educaram com esmero os filhos, deram-lhes tudo, tudo... menos doses avultadas
de carinho. Era a minha opinião! Nunca senti neles aqueles acessos de ternura,
nunca os considerei uns verdadeiros avós: nunca brincaram connosco, nunca
tiveram um gesto de carinho... Às tantas, devem ter esgotado todo o mimo com os
filhos... sim, meiguice para sete... não devia ser fácil... Os meus avós
maternos eram comerciantes e mais humanos: contavam histórias, brincavam
connosco, davam-nos guloseimas... Só me lembro de um episódio da minha avó
paterna que denunciou que ela lá no fundo, no fundo... se importava... gostava
de nós. Eu queimei-me na braseira (depois, conto-vos!) e a minha avó meteu-se
ao caminho e foi a pé da Benedita à Alvorninha só para me ver e fez isso várias
vezes... até eu ficar boa.
E,
chegada a parteira, que se enfiou no quarto com a minha avó... Eu, já segura do
que estava prestes a acontecer, decidi finalmente, algo a contragosto, sair daquela zona de conforto por onde andei
cerca de nove meses. Nasci meio negra e a fazer o maior berreiro, num protesto
bem audível. Irrompeu pelo quarto toda a família para ver a dita criaturinha de
Deus. Entre é uma menina, ah, que bonitinha, tão lourinha, tão perfeitinha...
surgiu o vozeirão do meu tio e padrinho: é ruça, ruça e de mau pêlo! A minha
tia e madrinha perguntou-lhe logo o que tinha ele contra as ruças e contra o pêlo
delas, que pela boca morre o peixe, que cá se fazem, cá se pagam, que a justiça
tarda... mas não falha... O meu tio ouvia, ouvia... e nada dizia... Estava atónito com a reacção da minha bonita tia ruça e de mau pêlo, pelo menos na
venta!... E a discussão era para continuar em mono, se a parteira não tivesse
sentenciado: discussões aqui... não e, apontando a porta, pôs tudo na rua. Até o
meu pai, mais parecendo um cachorrinho abandonado, enfiou o rabo entre as
pernas para sair, quando a ti Maria o travou: o senhor vai para ao pé da sua
filha e da sua mulher... Ele foi com o maior sorriso do mundo sentar-se à nossa
beira. Com uma mão afagava a mais pequenina mãozinha do mundo e com a outra
penteava as sobrancelhas da minha mãe e delineava-lhe os lábios, à vez.
A
discussão entre os meus futuros padrinhos continuou lá fora: ela não podia
admitir que aquele filho da mãe chamasse ruça de mau pêlo à sua afilhada linda
só porque tinha levado alguma tampa de alguma loura ou ruça ou lá o que quer
que fosse... E... foi tal a contenda que, passados alguns meses, quando ao meu padrinho
lhe nasceu o seu primeiro filho, este veio com o cabelo todo branco e todo no
ar. O meu tio bem tentava acachapar o cabelo do filho, mas este espetava-se,
apontando para o céu. Este cabelo vai cair todo e vai nascer-lhe um cabelo
negro como o de toda a família, sentenciava. Mas o cabelo não caiu nem
escureceu e ainda hoje o meu primo é dono de um cabelo quase branco e espetado
como os picos de um porco-espinho. A minha tia exultou e ainda hoje conta a
história com algumas pinceladas de fina malvadez. Ruça de mau pêlo, hein! E o
filho dele é o quê... albino?, e aquele cabelo sempre no ar?... Justiça divina!
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