A
janela estava entreaberta, a cortina oscilava levemente, e as pálpebras pesavam,
pesavam... O sol penetrava puído através daquele véu translúcido, e os olhos
teimavam em fechar-se brandamente... Sorria e abria a custo os olhos, uma e outra vez... A luta
com o sono terminava finalmente, mas a teia transparente continuava a deixar
passar uma luz difusa. Lá fora, o barulho da miudagem ia-se afastando,
caminhava para longe... para muito longe... A porta, fechada, filtrava o
barulho da máquina, e a voz dos meus pais ia-se diluindo... De repente,
nada... Silêncio absoluto! Sonhos cor-de-rosa! Um lugar distante!
A
minha avó não tardaria a chegar, não demoraria a espreitar pela porta... Parece
um anjinho!
- Não
vos disse já mil vezes que devem fechar a janela, enquanto a menina está a
dormir? Se alguém entrar, não dão por nada... com o barulho da máquina...
A
minha avó tinha um medo louco que me pudessem roubar. Passavam por ali ciganos
e, pelos vistos, ela não morria de amores por aquela gente. A verdade é que a ouvi dizer
várias vezes que os ciganos me podiam roubar...
- Que
disparate, mãe! Eles têm muitos filhos, não precisam de mais!
- Há
uma cigana que quando me encontra na rua com a menina, lhe afaga sempre a
cabeça, lhe remexe os caracóis louros, e é tão bonita a sua menina, e tem uns
olhos tão grandes e bonitos e que boquinha mais perfeitinha... Eu bem puxo a
menina para mim... A mulher mete-me medo! Parece que fica hipnotizada a olhar
para a tua filha!...
- Ó
mãe, mas que embirração é essa com os ciganos? Eles nunca fizeram ou disseram
nada de mal. Passam, olham, vão-se...
- Olham
de mais... não gosto deles... não confio neles... Custa-vos muito fechar a
janela, enquanto a menina dorme?
- Ela
gosta de adormecer a olhar para a cortina a abanar...
E a
minha avó chegou e espreitou pela porta e perguntou por mim. O meu pai
respondeu-lhe, está a dormir. Onde? Na nossa cama, claro! Não está na cama nem
no berço nem na alcofa. A minha mãe levantou a cabeça da bainha que estava a
fazer. O meu pai disse que a minha avó tinha de pôr os óculos e de parar de
brincar com coisas sérias! A minha avó pediu que acabassem com a brincadeira e
que lhe dissessem onde estava eu, afinal, a dormir! O meu pai largou as calças
que estava a chulear. A minha mãe atirou o vestido para cima da mesa. A minha
avó escancarou a porta. Todos se precipitaram para dentro do quarto. A cortina agitava-se
timidamente. Os garotos da rua jogavam à bola e gritavam. Lá longe, chiava um
carro de bois ou uma carroça. Os meus pais olharam-se aflitos e correram para a
janela. A minha avó correu para a porta da rua e perguntou aos miúdos se os
ciganos tinham passado por ali. Os rapazes assentiram. Tinham passado numa carroça. A rapaziada
continuou o jogo e a algazarra. A minha avó travou um garoto e questionou-o
quase com a cara dela encostada à dele. A menina? Viste a minha neta? Não, não tinha
visto. Os ciganos pararam? Não, seguiram na carroça.
- Como
sabes? Estavas na brincadeira! Estavam todos... Viram lá alguma coisa!
A
minha avó regressou a casa. Os meus pais não queriam acreditar... mas... eu não
estava mesmo ali! A minha avó começou a barafustar, eu bem vos disse, eu bem vos
disse...
- Temos
de chamar a polícia. Ó homem de Deus, faça alguma coisa. – gritou ela, completamente desatinada.
A
minha mãe desatou a chorar e... Ó meu Deus, ó meu Deus... E... eu despertei, remexi-me e comecei a choramingar.
O meu pai espreitou, levantou o folho da colcha, e lá estava eu debaixo da cama. Tinha caído e, envolta na
roupa, deslizara para debaixo da cama e fizera um grande e abençoado sono.