A Joana. Há muito que não via a Joana. Vi-a. Não, não a vi. Se ela não me chamasse, não a teria reconhecido. A voz. Foi a voz. Nunca vou esquecer a sua voz...
Conheci a Joana, quando "herdei" uma turma de uma colega que foi colocada algures, depois de uns bons anos na minha escola. Coisas incompreensíveis!
A Joana chegou à primeira aula e sentou-se do outro lado da sala, no lugar oposto à minha secretária, perto da porta, como se quisesse fugir dali o mais depressa possível. Estava vestida de preto. Acho que nunca a vi vestida de cores claras. Também nunca a vi de calças! Era bem constituída, bonita, sorridente.
- Por que razão não é a professora R. a nossa professora? - perguntou, um tanto zangada.
Encolhi os ombros, não estava com vontade de dar explicações, de falar de assuntos que não eram meus...
- Para mim, a professora R. é a melhor professora que eu já tive! Ah, e vai continuar a sê-lo.
- Não sejas parva, Joana, ainda não conheces a professora! Pode ser tão boa como a prof do ano passado ou até melhor!...
- E pior não pode ser? Se temos uma professora ou professor de que gostamos, não deviam mudar...
- Pronto, Joana, já todos percebemos a tua revolta, mas não podemos fazer nada. Eu vou ser tua professora, tu vais ser minha aluna. É só um ano, não é uma vida...
Foi a vez da Joana encolher os ombros e de fazer um sorriso meio amarelo, muito contrariado.
A Joana era boa aluna e fazia questão de fazer saber que esta ou aquela matéria lhe tinha sido ensinada pela professora R. Entretanto, acabaram as revisões, surgiram novos conteúdos e a Joana quis mudar de lugar. Pretendia sentar-se mesmo à minha frente. A meio do primeiro período, já ninguém queria trocar de lugar! Todos se sentiam bem onde estavam, menos a Joana que insistia e insistia em vir para perto da minha secretária.
- Não querias ver a professora nem pintada e agora queres que eu saia do meu lugar para te sentares mesmo à frente da prof!...
Todos os dias, a Joana pedia para mudar de lugar, e a insistência foi tal, que tive de colocar mais uma mesa na fila da frente para a instalar. E houve ainda outro colega que lucrou com a situação e que se apoderou logo da segunda vaga.
- Se eu mandasse, mandava pôr só mesas à frente!
Resolvida esta questão, as aulas decorreram sempre muito bem. A turma era óptima! Os melhores alunos faziam questão de ajudar os mais fracos...
No final do ano, a Joana veio pedir-me desculpa. A sua animosidade não era contra mim, era contra o sistema que estava sempre a mudar as regras a meio do jogo...
- A professora é óptima! É uma óptima professora, óptima pessoa, óptima ouvinte, óptima conselheira... Dificilmente encontrarei outra professora assim. Gostei muito de ser sua aluna e, já agora, agradeço ao sistema por me ter dado a oportunidade de a conhecer e de a ter como professora.
Esta turma foi um presente que eu tive nesse ano. Fomos ao teatro, fomos ao cinema, participámos em mil actividades. Estes alunos estavam sempre disponíveis a abraçar qualquer projecto. A Joana ganhou as Olimpíadas da Leitura do 9.º ano, a Ana Beatriz do 7.º ano, do 8.º não me lembro da aluna. Eu só tinha sétimos e nonos, a Joana e a Ana eram minhas alunas.
A final do concurso foi na Nazaré. De manhã, fizeram-se as provas. Eu e a I., a professora bibliotecária, esperámos pelas nossas meninas. Depois, fomos almoçar todas. A I. teve de acompanhar a menina do oitavo ano e eu fiquei com as minhas alunas. Tínhamos duas ou três horas. Decidimos ir passear, ir até à praia. Estava muito vento e o frio também não era pouco. O vento levantava a areia e cegava-nos. Desatámos a correr e a rir até à marginal. Fomos ver as montras das lojas de roupa, sapatos, malas... Numa montra estava já a colecção de Primavera/Verão. As cores claras aqueciam aquele tempo fresquinho de mais para o nosso gosto. A Ana teve a ideia de entrarmos na loja. A Joana concordou logo! Entrámos, fomos vendo as sandálias, as malas, as écharpes... Comentávamos este ou aquele acessório. Ríamos. Experimentámos chapéus!
- Professora, estas sandálias são mesmo a sua cara!
- A senhora é a professora destas meninas? - perguntou a funcionária.
Assenti.
- Sério?
- É a nossa professora de português.
A rapariga ficou de boca aberta a olhar-nos e nós olhámos umas para as outras e desatámos a rir.
- Professora, experimente estas sandálias - insistia a Ana.
- Esta mala fica bem com as sandálias... - reforçava a Joana.
- Por acaso, gosto das vossas propostas, são realmente a minha cara.
- Vai usar-se muito o salmão... - acrescentou a funcionária.
E ali estivemos um pedaço de tempo as três a experimentar sandálias, chapéus, luvas... Fizemos o nosso desfile!
- Professora, compre alguma coisa de que goste para se lembrar para sempre desta tarde e de nós.
E comprei as sandálias que a Ana escolheu e a mala que a Joana aprovou. Ainda hoje tenho ambas as peças que me recordam uma tarde fria, ventosa, mas quente de emoções e de carinho.
No outro dia toda a escola soube o que tinha acontecido na Nazaré.
Encontrei, então, a Joana!... Melhor, a Joana encontrou-me. Reconheci-a pela voz! Estava muito diferente, mais magra, menos sorridente. Só a roupa era igual, preta. Estava decepcionada com a sua escola actual, com os professores, com tudo. Não se conseguia identificar com a nova realidade.
- E as notas, Joana!
- Nada de especial, professora. Podiam ser melhores! Eu sei! Mas custa-me tanto levantar-me todos os dias para ir para a escola. Sabe que no princípio das aulas, por duas ou três vezes, me enganei e só já bem perto da nossa escolinha é que vi que não era para ali que eu tinha de ir...
Às vezes, nas aulas, só me lembro de si, do seu sorriso, da sua voz e das suas aulas "tão limpas, tão leves". Só me lembro de todos os professores da nossa escolinha, dos funcionários... Nada é igual! São todos tão pouco simpáticos, são todos tão "doutores"...
Suspirou. Respirou fundo e prosseguiu:
- São só nossos professores e nada mais! Na rua não nos cumprimentam, somos invisíveis...
Sabe, estou a pensar mudar de curso, mas o que eu gostava mais era de mudar de escola. A maior parte das aulas são uma seca! O que interessa é termos boas notas! Anda toda a gente ou quase toda na explicação porque o que conta são as notas, são os números... Mas, em primeiro lugar, o que devia contar em primeiro lugar eram as pessoas! Era o que a professora dizia! Eu lembro-me muito bem de tudo o que a professora nos dizia... E tenho saudades! Há uma expressão sua de que nunca vou esquecer: "É melhor aprenderem com os erros dos outros, dói menos!"
Eu também tenho saudades da "velha" Joana, da nossa escolinha e das pessoas dessa "velha escolinha".
Sei, Joana, que já encontraste o teu caminho. Quero voltar a encontrar-te com aquele grande sorriso a enfeitar a tua cara bonita.