Conheci-o num banco de
jardim.
Estava calor. Estava muito calor! Estava à espera da
minha filha que fora andar de barco com os amigos. Primeiro, fiquei debruçada
na ponte a vê-la passar com os colegas. O barco girava de um lado para o outro, completamente desnorteado...
Acusavam-se aos gritos: larga os remos, tu não sabes remar! E os remos andavam
de mão em mão, como o barco ia de margem a margem, às voltas, embatendo aqui e
ali e nos barcos que iam passando, ganhando terreno, ao mesmo tempo e com a
mesma velocidade com que a algazarra e as incriminações se sucediam. Perdida de
riso, acabei por deixá-los ali a decidir a melhor maneira de fazerem avançar o
barco. Desci as escadinhas de madeira da ponte, bordejada de mil verdes e de flores coloridas
e perfumadas e sentei-me no primeiro banco perto do lago e do local onde o
alarido continuava animado.
Ele estava sentado na outra ponta do banco com o olhar
perdido na água esverdeada do lago, onde saltitavam dois ou três alegres peixinhos
prateados. Olhei-o de soslaio, não queria que se sentisse incomodado com a
minha presença: podia ser um solitário, um sonhador...
Peguei num pauzinho e comecei a riscar o chão,
tentando não fazer pó. E, enquanto desenhava círculos, corações, flores, astros...,
o homem foi desviando a sua atenção da água e pegou também ele numa pequena
haste caída da frondosa árvore que nos fazia sombra. Olhou-a, partiu-a, retirou-lhe
algumas folhas amarelecidas e começou também ele a desenhar no pó. Sorri,
afinal não sou só eu que tenho o costume de enfeitar tudo o que me fica perto
dos pés!, pensei. O seu desenho
compunha-se de moinhos, árvores, pequenos animais, plantas... Em pouco tempo o seu traço
atingiu o meu e vi-o a tentar conjugar o seu tracejado com os meus rabiscos. Olhou-me,
os nossos olhos encontraram-se. Sorriu. Sorri. Tinha olhos amendoados, verde-azeitona,
a pele clara e o cabelo totalmente branco. Deveria ter sido um homem lindo, imaginei.
- Desculpe ter
abalroado o seu desenho! Já há muito tempo que não garatujava no chão. Há uma
vida! Era garoto...
Calou-se momentaneamente e, com um ar sonhador, meio
abstracto, perguntou:
- Posso conversar
consigo? Não converso há muito tempo com uma mulher bonita. Aliás, acho que
nunca conversei com uma mulher tão bonita como a senhora.
Corei, agradeci atabalhoadamente o elogio e concordei
em conversar com aquele desconhecido de olhos doces e voz melíflua.
- Costumo passear
por aqui e nunca a vi, não costuma vir ao jardim?, claro que não!, tinha-a visto, se viesse. Sento-me neste banco a ver a água a brilhar, os peixes a saltitar, os
jovens a andar de barco... Sabe, desde que me reformei que não encontro muito
sentido para a vida... O trabalho era uma companhia!...
Casei duas vezes e duas vezes me divorciei. Tenho dois
filhos, não tenho netos e não tenho esperança de vir a ter... Não tenho muitos
amigos. Eles gostam de jogar às cartas, às damas, xadrez, dominó... e eu gosto
de me perder nos meus livros, nos meus filmes, nos meus pensamentos, nos
sonhos por realizar, no que a vida foi e no que poderia ter sido...
Olhou-me e calou-se. Procurou-me os olhos e sorriu
satisfeito.
- Pelos seus olhos,
vejo que não a estou a maçar!
Meneei a cabeça, não, não.
- É bom falar com
uma doce e bela desconhecida... Ainda por cima, gosta de me ouvir ou, melhor!, não se importa de me ouvir!...
Hoje, olhando
para trás, acho que a minha vida foi passando sem eu dar conta, as coisas foram
surgindo, acontecendo, sem eu ter feito grande coisa para mudar fosse o que
fosse...
Fui um miúdo traquina, um adolescente desligado, distraído, ausente...
Pobrezinha da minha mãe! Ela sofreu muito comigo. Eu desaparecia dias a fio e
nem uma palavra... Eu estava bem! Era o que contava... Nem me passava pela
cabeça a aflição da minha mãe! Coitada! Agora já não posso fazer mais nada,
morreu e eu, por vezes, dou comigo a penalizar-me pelo filho que fui... ela não
merecia.
Olhou-me vagamente, meio triste, à espera, talvez, que lhe dissesse algo, mas eu não encontrava as palavras certas para o animar, limitei-me a sorrir.
- Tem um sorriso
lindo! Quantas vezes já ouviu isso!, certamente muitas!, não, não quero que me
agradeça, nem estou a tentar engatá-la... Já não tenho idade!
As minhas mulheres não eram bonitas, numa
escala de 1 a 10, ficavam-se... para aí no 4... Casei-me das duas vezes quase
por acidente!...
Não faça essa cara de espanto! Acidente, sim! Casei aos
19 anos, era um miúdo e ela outra miúda, foi um casamento de garotos, claro que
não podia dar certo! Nem sei se gostava verdadeiramente dela, gostava de sexo,
queria sexo e para ter sexo tinha de casar e então casei. Depois ela
engravidou, nasceu o meu filho... Depois divorciei-me, não havia amor e o sexo
também já não era aquela coisa!
E disse coisa de modo tão enfático, tão
exagerado, e os olhos no chão perdidos,
presos entre os riscos e os rabiscos. Os meus olhos permaneciam também enleados nos desenhos...
- E os anos
seguintes foram de boémia, queria viver tudo o que não tinha vivido na
adolescência: passava as noites nos bares a beber, a conversar... E a minha mãe
a consumir-se, cada vez ia ficando mais velha e o filho mais inconsciente, mais
irresponsável. Vê lá se assentas, ganha juízo, dizia ela e terminava lamurienta
com um ai a minha vida!, tão sofrido! Mas, eu não a escutava, andava surdo e
cego. Era o dono do mundo!
Peguei de novo no pauzito e avivei alguns riscos,
porque não sabia o que dizer, nem o que fazer, mas precisava de fazer algo, de
me mexer...
- Os bares eram
frequentados por artistas até altas horas da madrugada, eu era bem-parecido, as
mulheres olhavam-me, mas eu continuava na minha... Um dia, um dia não, uma
noite, uma actriz conhecidíssima, bonita, mais velha do que eu, veio sentar-se
ao meu colo e beijou-me na boca. Veja lá! Sentou-se-me ao colo e beijou-me!...
Fiquei intrigadíssimo, mas todo contente, como um garoto a quem deram um
chupa-chupa ou algodão-doce! Mas, depois apercebi-me que ela não me beijara, porque tivesse
gostado de mim, não, apenas e só me beijou para fazer ciúmes ao namorado...
E as minhas noites eram todas iguais!
Parou e olhou para o desenho entretecido que crescia
no chão. Suspirou alto.
- Sabe, foi numa
dessas noites de boémia que conheci a minha segunda mulher. Apareceu com alguns
amigos comuns. Feitas as apresentações, conversas sobre isto e aquilo, acabámos
por ficar sozinhos a prosear e nessa mesma noite demos uns beijinhos. Fomo-nos
encontrando, ela começou a dizer que queria um filho meu, nunca me disse que me
amava e eu também nunca lho disse. Para quê dizer coisas que não sentimos, não
é?
Olhou para mim, mantive os olhos no desenho, mas como ele
continuava calado, levantei a cabeça e olhei-o com um grande ponto de
interrogação no olhar.
- Não diz nada?
- Não. Ouço-o
apenas. Se quiser contar-me o resto da sua história.
- Conto. Nunca
falei de mim a ninguém e agora vejo-me aqui a contar a minha vida a uma
estranha. Mas, continuando, a minha mãe pedia-me que ganhasse juízo, que
olhasse pela minha vida, que ela não ia durar para sempre... Conversas de mãe!,
sabe como é?
E, pronto, ela engravidou e eu não ia deixá-la com um
filho meu na barriga, casei. Passaram-se uns anos, a vida decorria sem
sobressaltos, tinha uma filha que adorava, uma família...
Parece-lhe uma história
feliz?
A pergunta apanhou-me desprevenida e ele repetiu-a
mais duas vezes.
- Não sei se foi
uma história feliz, talvez tenha sido durante algum tempo, mas se agora está
sozinho, é porque a história, feliz ou não, terminou. Por outro lado, nunca
falou de amor!...
- Eu disse que não
falava do que não sentia. Casei-me duas vezes e divorciei-me, como já lhe
contei, não amei as minhas mulheres, mas também não foi um sacrifício viver com
elas! Está a entender-me?
- Sim. Mas, porque
se separou então?
- Ela encontrou o
príncipe encantado e disse-me que eu já não fazia parte da sua história, que ia
viver finalmente o grande amor da sua vida, o amor por que sempre esperou...
Que podia eu fazer?, deixá-la ir, claro! Eu ainda lhe propus que fosse lá viver
o seu grande amor e se desse certo, eu desaparecia, se não desse, continuaríamos
como se nada tivesse acontecido, mas ela não aceitou...
Eu, no fundo, só queria
aquele conforto e estar ao pé da minha filha. Ainda esperneei um bocado, mas,
depois, vi que não tinha sentido estar ali a impedir que ela fosse feliz com a
pessoa por quem estava apaixonada.
Calou-se, o silêncio era tão pesado que doía, não
consegui encará-lo logo. Aquela história era incrível, a história de um homem
que nunca amou.
- Aí vem a sua filha!
- A minha filha?
- Só pode ser sua filha, é igualzinha a si.
Olhei para o local que ele apontava, abri o meu melhor
sorriso para receber a minha princesa.
- Mãe, que belo quadro
tens aos teus pés! Foste tu que fizeste?
Olhei para o lado, enquanto ia dizendo um: foi este
senhor que me ajudou... mas a voz ficou-me suspensa na garganta, ao meu lado
não estava ninguém, só a pequena haste...
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