segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O homem que nunca amou



Conheci-o num banco de jardim.
Estava calor. Estava muito calor! Estava à espera da minha filha que fora andar de barco com os amigos. Primeiro, fiquei debruçada na ponte a vê-la passar com os colegas. O barco girava de um lado para o outro, completamente desnorteado... 
Acusavam-se aos gritos: larga os remos, tu não sabes remar! E os remos andavam de mão em mão, como o barco ia de margem a margem, às voltas, embatendo aqui e ali e nos barcos que iam passando, ganhando terreno, ao mesmo tempo e com a mesma velocidade com que a algazarra e as incriminações se sucediam. Perdida de riso, acabei por deixá-los ali a decidir a melhor maneira de fazerem avançar o barco. Desci as escadinhas de madeira da ponte, bordejada de mil verdes e de flores coloridas e perfumadas e sentei-me no primeiro banco perto do lago e do local onde o alarido continuava animado.
Ele estava sentado na outra ponta do banco com o olhar perdido na água esverdeada do lago, onde saltitavam dois ou três alegres peixinhos prateados. Olhei-o de soslaio, não queria que se sentisse incomodado com a minha presença: podia ser um solitário, um sonhador...
Peguei num pauzinho e comecei a riscar o chão, tentando não fazer pó. E, enquanto desenhava círculos, corações, flores, astros..., o homem foi desviando a sua atenção da água e pegou também ele numa pequena haste caída da frondosa árvore que nos fazia sombra. Olhou-a, partiu-a, retirou-lhe algumas folhas amarelecidas e começou também ele a desenhar no pó. Sorri, afinal não sou só eu que tenho o costume de enfeitar tudo o que me fica perto dos pés!, pensei.  O seu desenho compunha-se de moinhos, árvores, pequenos animais, plantas... Em pouco tempo o seu traço atingiu o meu e vi-o a tentar conjugar o seu tracejado com os meus rabiscos. Olhou-me, os nossos olhos encontraram-se. Sorriu. Sorri. Tinha olhos amendoados, verde-azeitona, a pele clara e o cabelo totalmente branco. Deveria ter sido um homem lindo, imaginei.

- Desculpe ter abalroado o seu desenho! Já há muito tempo que não garatujava no chão. Há uma vida! Era garoto...

Calou-se momentaneamente e, com um ar sonhador, meio abstracto, perguntou:

- Posso conversar consigo? Não converso há muito tempo com uma mulher bonita. Aliás, acho que nunca conversei com uma mulher tão bonita como a senhora.

Corei, agradeci atabalhoadamente o elogio e concordei em conversar com aquele desconhecido de olhos doces e voz melíflua.

- Costumo passear por aqui e nunca a vi, não costuma vir ao jardim?, claro que não!, tinha-a visto, se viesse. Sento-me neste banco a ver a água a brilhar, os peixes a saltitar, os jovens a andar de barco... Sabe, desde que me reformei que não encontro muito sentido para a vida... O trabalho era uma companhia!...
Casei duas vezes e duas vezes me divorciei. Tenho dois filhos, não tenho netos e não tenho esperança de vir a ter... Não tenho muitos amigos. Eles gostam de jogar às cartas, às damas, xadrez, dominó... e eu gosto de me  perder nos meus livros, nos meus filmes, nos meus pensamentos, nos sonhos por realizar, no que a vida foi e no que poderia ter sido...

Olhou-me e calou-se. Procurou-me os olhos e sorriu satisfeito.

- Pelos seus olhos, vejo que não a estou a maçar!

Meneei a cabeça, não, não.

- É bom falar com uma doce e bela desconhecida... Ainda por cima, gosta de me ouvir ou, melhor!,  não se importa de me ouvir!... 
Hoje, olhando para trás, acho que a minha vida foi passando sem eu dar conta, as coisas foram surgindo, acontecendo, sem eu ter feito grande coisa para mudar fosse o que fosse...
Fui um miúdo traquina, um adolescente desligado, distraído, ausente... Pobrezinha da minha mãe! Ela sofreu muito comigo. Eu desaparecia dias a fio e nem uma palavra... Eu estava bem! Era o que contava... Nem me passava pela cabeça a aflição da minha mãe! Coitada! Agora já não posso fazer mais nada, morreu e eu, por vezes, dou comigo a penalizar-me pelo filho que fui... ela não merecia.

Olhou-me vagamente, meio triste, à espera, talvez,  que lhe dissesse algo, mas eu não encontrava as palavras certas para o animar, limitei-me a sorrir.

- Tem um sorriso lindo! Quantas vezes já ouviu isso!, certamente muitas!, não, não quero que me agradeça, nem estou a tentar engatá-la... Já não tenho idade!
As minhas mulheres não eram bonitas, numa escala de 1 a 10, ficavam-se... para aí no 4... Casei-me das duas vezes quase por acidente!...
Não faça essa cara de espanto! Acidente, sim! Casei aos 19 anos, era um miúdo e ela outra miúda, foi um casamento de garotos, claro que não podia dar certo! Nem sei se gostava verdadeiramente dela, gostava de sexo, queria sexo e para ter sexo tinha de casar e então casei. Depois ela engravidou, nasceu o meu filho... Depois divorciei-me, não havia amor e o sexo também já não era aquela coisa!

E disse coisa de modo tão enfático, tão exagerado,  e os olhos no chão perdidos, presos entre os riscos e os rabiscos. Os meus olhos permaneciam também enleados nos desenhos...

- E os anos seguintes foram de boémia, queria viver tudo o que não tinha vivido na adolescência: passava as noites nos bares a beber, a conversar... E a minha mãe a consumir-se, cada vez ia ficando mais velha e o filho mais inconsciente, mais irresponsável. Vê lá se assentas, ganha juízo, dizia ela e terminava lamurienta com um ai a minha vida!, tão sofrido! Mas, eu não a escutava, andava surdo e cego. Era o dono do mundo!

Peguei de novo no pauzito e avivei alguns riscos, porque não sabia o que dizer, nem o que fazer, mas precisava de fazer algo, de me mexer...

- Os bares eram frequentados por artistas até altas horas da madrugada, eu era bem-parecido, as mulheres olhavam-me, mas eu continuava na minha... Um dia, um dia não, uma noite, uma actriz conhecidíssima, bonita, mais velha do que eu, veio sentar-se ao meu colo e beijou-me na boca. Veja lá! Sentou-se-me ao colo e beijou-me!... Fiquei intrigadíssimo, mas todo contente, como um garoto a quem deram um chupa-chupa ou algodão-doce! Mas, depois apercebi-me que ela não me beijara, porque tivesse gostado de mim, não, apenas e só me beijou para fazer ciúmes ao namorado...
E as minhas noites eram todas iguais!

Parou e olhou para o desenho entretecido que crescia no chão. Suspirou alto.

- Sabe, foi numa dessas noites de boémia que conheci a minha segunda mulher. Apareceu com alguns amigos comuns. Feitas as apresentações, conversas sobre isto e aquilo, acabámos por ficar sozinhos a prosear e nessa mesma noite demos uns beijinhos. Fomo-nos encontrando, ela começou a dizer que queria um filho meu, nunca me disse que me amava e eu também nunca lho disse. Para quê dizer coisas que não sentimos, não é?

Olhou para mim, mantive os olhos no desenho, mas como ele continuava calado, levantei a cabeça e olhei-o com um grande ponto de interrogação no olhar.

- Não diz nada?
- Não. Ouço-o apenas. Se quiser contar-me o resto da sua história.
- Conto. Nunca falei de mim a ninguém e agora vejo-me aqui a contar a minha vida a uma estranha. Mas, continuando, a minha mãe pedia-me que ganhasse juízo, que olhasse pela minha vida, que ela não ia durar para sempre... Conversas de mãe!, sabe como é?
E, pronto, ela engravidou e eu não ia deixá-la com um filho meu na barriga, casei. Passaram-se uns anos, a vida decorria sem sobressaltos, tinha uma filha que adorava, uma família...
Parece-lhe uma história feliz?

A pergunta apanhou-me desprevenida e ele repetiu-a mais duas vezes.

- Não sei se foi uma história feliz, talvez tenha sido durante algum tempo, mas se agora está sozinho, é porque a história, feliz ou não, terminou. Por outro lado, nunca falou de amor!...
- Eu disse que não falava do que não sentia. Casei-me duas vezes e divorciei-me, como já lhe contei, não amei as minhas mulheres, mas também não foi um sacrifício viver com elas! Está a entender-me?
- Sim. Mas, porque se separou então?
- Ela encontrou o príncipe encantado e disse-me que eu já não fazia parte da sua história, que ia viver finalmente o grande amor da sua vida, o amor por que sempre esperou... 
Que podia eu fazer?, deixá-la ir, claro! Eu ainda lhe propus que fosse lá viver o seu grande amor e se desse certo, eu desaparecia, se não desse, continuaríamos como se nada tivesse acontecido, mas ela não aceitou... 
Eu, no fundo, só queria aquele conforto e estar ao pé da minha filha. Ainda esperneei um bocado, mas, depois, vi que não tinha sentido estar ali a impedir que ela fosse feliz com a pessoa por quem estava apaixonada.

Calou-se, o silêncio era tão pesado que doía, não consegui encará-lo logo. Aquela história era incrível, a história de um homem que nunca amou.

- Aí vem a sua filha!
- A minha filha?
- Só pode ser sua filha, é igualzinha a si.

Olhei para o local que ele apontava, abri o meu melhor sorriso para receber a minha princesa.

- Mãe, que belo quadro tens aos teus pés! Foste tu que fizeste?

Olhei para o lado, enquanto ia dizendo um: foi este senhor que me ajudou... mas a voz ficou-me suspensa na garganta, ao meu lado não estava ninguém, só a pequena haste...

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