Apresento-me...
O meu nome é Luís Vaz de Camões e vivi
em Portugal no século XVI. Aqueles que mais tarde viriam a ocupar-se da minha
vida (os meus biógrafos) viram-se em sérios embaraços para sabê-lo, visto que não
conseguiram obter documentos seguros a meu respeito. Muitas histórias se
inventaram sobre mim, mas, como diria mais tarde, no século XX, um famoso
cineasta, de origem irlandesa e de nome John Ford, "quando a lenda
ultrapassa a realidade, publique-se a lenda…”
De qualquer modo, vou, para que a minha
apresentação seja mais completa, dizer-vos que nasci em Portugal, em Lisboa,
por volta de 1524.
A minha família era pobre e pobre vivi
sempre. No entanto, e porque, mesmo pobre, a minha família pertencia à nobreza,
pude ser educado no contacto com os clássicos gregos e latinos, e conhecer toda
a literatura e civilização desses dois povos. Li, nomeadamente, os livros que
considero os mais importantes do Mundo: os poemas de Homero sobre a
Guerra de Tróia - A Íliada - e sobre as aventuras do sábio Ulisses - A
Odisseia - e o poema de Virgílio, narrando as navegações de Eneias -
A Eneida. Aprendi também muitas lendas ligadas aos Gregos e Romanos,
como a lenda dos Argonautas, navegadores que procuravam encontrar o velo de
ouro. E fiquei a saber a mitologia dos Gregos e Romanos e, portanto, as histórias
dos seus deuses e deusas. Gostei também de ler coisas relacionadas com o Rei
Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, bem como sobre Carlos Magno e os Doze
Pares de França. Pude conhecer igualmente outros livros e autores estrangeiros
muito admirados e lidos no meu tempo, como Ariosto e Petrarca e
gostei particularmente dos sonetos deste último.
Para além da leitura, Ocupava eu o meu
tempo em distracções próprias de Jovens, como namorar as cachopas bem lindas do
meu tempo, em Coimbra, segundo dizem, e, mais tarde, em Lisboa. Os meus biógrafos
haveriam de inventar-me muitas namoradas, nomeadamente entre as donzelas e
damas da Corte e mesmo amores por princesas. Não sou eu quem vos dirá se é
verdade ou mentira tudo quanto pensaram descobrir porque, aqui para nós, até
fico vaidoso de saber de tantos namoros... A verdade é que nem sempre fui
muito bem comportado e vi-me envolvido em brigas. É que eu era bom espadachim e ai de quem se metesse
comigo!... Estive preso por diversas ocasiões, nomeadamente em Constância dizem os habitantes dessa linda terra junto
ao Tejo. Mas também sobre isso não há certezas e eu, mesmo que me lembrasse, não
iria desapontá-los.
Frequentei também Os serões da Corte e
fiz muitos versos às damas; mais tarde seriam publicados com o título de Lírica.
Ganhei fama, adeptos (sobretudo entre as damas) e inimigos, gente invejosa
do meu êxito e do meu talento de poeta lírico.
A determinada
altura fui para soldado, profissão própria de nobres, e fui combater os Mouros
para o Norte de África, zona em que o meu Rei queria obter territórios. A vida
na tropa não foi nada boa, porque mesmo quando a guerra é justa - e eu até
achava as guerras contra os Mouros justas e santas, pois acreditava serem
boas para o meu Rei e para poder
levar-se a verdadeira religião a África e ao Oriente, - o perigo é grande de
morrer jovem ou de ser ferido. E foi isso mesmo que sucedeu: fui ferido em
combate e perdi para sempre um dos meus olhos. Eu até era um rapaz jeitoso e
com sorte junto das moças, mas algumas, por maldade, ou simplesmente porque
eram tontas, troçavam de mim por ser cego de um dos olhos, chamando-me
"cara sem olhos” Vingava-me, fazendo versos e até fazendo humor sobre a
minha infelicidade... Como estes:
Sem olhos vi o mal claro
que dos olhos se
seguiu:
pois cara sem olhos viu
olhos que lhe
custam caro.
De olhos não faço
menção,
pois quereis que
olhos não sejam;
vendo-vos, olhos
sobejam,
não vos vendo,
olhos não são.
Tempos
depois, fui enviado para a Índia, dizem alguns que como castigo por mau
comportamento, outros que por vingança de algum rival por mim vencido nos amores
ou nas brigas. Não me ralei. A verdade é que senti um enorme prazer em poder
repetir a viagem que tantos portugueses já tinham feito antes e que Vasco da
Gama, para mim o mais importante herói de Portugal, fizera pela primeira vez em
1498. Gostei de conhecer a costa africana, o Oceano Atlântico e também o Índico
e de ir prestar serviço para Goa, capital do Império Português do Oriente.
Claro que eram viagens difíceis, mas gostei muito de poder conhecer novos céus,
novos climas, novos usos e costumes tão diferentes dos nossos, novas formas de
arte, outras religiões e mulheres lindíssimas como a Bárbara e a Dinamene, de
beleza tão diferente das mulheres europeias, duas cativas que de mim fizeram
para sempre um cativo seu. Sobre a primeira escrevi eu
Aquela cativa
Que me tem cativo
Porque nela vivo
Já não quer que viva
Tal como tinha acontecido em Lisboa,
também por estas bandas me não faltaram inimigos... e, a certa altura, fui
enviado para Macau, com um cargo oficial. Gostei de estar nesse território chinês
ocupado por portugueses. Diz a lenda que em Macau escrevi os meus Lusíadas numa
gruta adequada ao trabalho de fazer poesia... Acusaram-me de fraudes. Estava
inocente, mas tive de regressar a Goa, em cuja prisão passei dias amargos...
Por sinal, da minha estadia na prisão existe um retrato.
No Oriente fui igualmente vítima de um
naufrágio em que quase perdi a vida e no qual salvei a custo Os Lusíadas. Esse
naufrágio no rio Mecom deixaria em mim uma enorme tristeza e um grande
desalento. É que nele morreu a minha
Dinamene, que recordaria sempre com saudade e mágoa. À sua recordação dediquei poemas muito sentidos. É que nunca mais me foi tão doce a vida, após a
perda da minha amiga, tão jovem, tão bela, a quem eu tanto amava e que me amava
tanto a mim. Sonho muitas vezes com ela, vejo-a, chamo-a pelo nome..
Dina!...
e antes que diga mene
acordo e vejo
que nem um breve engano posso ter.
Regressei algum tempo depois a Portugal
e à minha Lisboa. Ao contrário de tantos que na Índia fizeram fortuna rápida, regressei
mais pobre do que quando tinha saído. Tanto, que só tive dinheiro para pagar a
viagem até à Ilha de Moçambique. Por lá fiquei, até que amigos que vinham da Índia
me pagaram o resto da viagem.
Em Lisboa aguardava-me, ansiosa, a
minha querida mãe, uma das muitas que tinham visto partir os filhos com
amargura e medo de os não voltar a ver, como conto no meu livro Os Lusíadas.
Vinha fraco, pobre e doente. Tive, felizmente, o apoio de um escravo que
veio comigo. Melhor direi, de um grande amigo, o António, mais conhecido por
Jau, por ser natural da ilha de Java. Muito lhe devo pela amizade e até porque
muitas vezes pedia esmola para eu poder sobreviver. Tratei de conseguir a
publicação do meu livro, em que procurei ser um digno continuador do génio de Homero
e Virgílio. Não era fácil publicar um livro em Portugal. Os Portugueses não
ligavam muito à arte e à poesia, o que é pena. Pedi audiência ao Rei, um jovem
simpático que prometia ser valente - D.
Sebastião - e pedi-lhe que me
permitisse ler-lhe o meu poema - que aliás lhe dedicava. Se ele aceitasse
ouvir-me, haveria de ver que era muito mais importante ser rei dos Portugueses
do que ser rei do Mundo.
O Rei
aceitou ouvir-me longamente e os seus olhos brilhavam de entusiasmo ao ouvir a
história do povo lusíada, ou português, bem mais importante que as muitas histórias
dos antigos, já cantadas por Homero e Virgílio. Após a leitura, agradeceu-me e
prometeu pagar-me uma pensão razoável até ao fim dos meus dias. Nem sempre a
pensão chegou, porque os reis são bem mais rápidos a prometer do que a cumprir
algumas das suas promessas... Também é certo que o jovem rei estava envolvido
na preparação de uma expedição militar a Marrocos (mal ele sabia que aí haveria
de perder a vida...), e essas coisas de guerras exigem muito dinheiro...
Seja como for, e isso é que importa, o
meu livro foi publicado em 1572 e com tanto êxito, que logo nesse ano houve uma
segunda edição. É bom
que eu diga aos meus jovens leitores do século XX que, nessa altura, pouca
gente sabia ler. De mim ficaram os meus versos, as composições líricas, em que
trato de assuntos sentimentais, emotivos; algumas peças de teatro - EI-rei
Seleuco, Anfitriões, Filodemo. Mas a minha melhor e mais conhecida obra é,
de facto, Os Lusíadas.
Já chega de tanto falar
de mim. Afinal, se hoje sou conhecido em todo o Mundo, tal se deve aos meus
poemas e não à minha vida como pessoa. E, se a vida me não correu muito bem,
depois da minha morte tornaram-me o símbolo da nossa pátria e daquilo que há de
melhor no povo português. Tanto que, mais tarde, transferiram o que restava do
meu corpo para o Mosteiro dos Jerónimos, para um túmulo junto ao de Vasco da
Gama, onde hoje sou visitado por muitos portugueses e estrangeiros, que me põem
umas flores de vez em quando. Muitos desses visitantes, se calhar, nunca me
leram, mas ouvem falar de mim como um dos grandes poetas da humanidade e como símbolo
da nossa pátria. Por isso, a data da minha morte, 10 de Junho, é assinalada
como dia feriado: o Dia de Portugal.
Amélia Pinto Pais
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