Bicarbonato de Soda
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Álvaro de Campos, in "Poemas"
A composição poética pode ser dividida em três partes lógicas. A primeira corresponde à primeira estrofe, onde o sujeito lírico confessa que foi atingido de forma inesperada por uma angústia dilacerante, que corrói todo o seu corpo até atingir o âmago do seu ser: “Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!”. Perante este estado de angústia, vê-se ironicamente sozinho! Com efeito, não encontra apoio nos amigos (“Que amigos que tenho tido!”), nem tão-pouco entre as gentes que povoam as cidades: “Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!” Ele é, assim, um ser rejeitado, sentindo-se um solitário no meio da multidão incógnita. Até os seus anseios são metaforicamente identicados com o “esterco”; logo, sem sentido, porque impuros, nojentos, sem razão de ser.
Na segunda parte, que engloba as segunda, terceira, quarta e quinta estrofes, o sujeito poético volta a insistir na profunda angústia que o acometeu. Sente uma desconsolação que é tão grande que se expande até à superfície da sua alma: “Uma desconsolação da epiderme da alma”. Completamente derrotado, desiste e renega tudo aquilo que lhe poderia ainda servir de algum alívio: “Renego mais do que tudo”. Entretanto, recorrendo a duas perguntas retóricas, deixa transparecer a certeza de que o vazio irrompeu por todo o seu ser: “Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?/ Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?” . Mas será esse um motivo suficiente para provocar a sua própria queda? Não, ainda é tempo de resistir, de “existir”, de sobreviver, só que a esperança numa regeneração não passa de mera ilusão: “Renunciar de portas todas abertas”. Assim, sem esperança e sem sentido, a sua existência contrasta de forma notória com a alegria dos outros, pois as “brisas”, as “portas” e as “janelas” abertas para o mundo, ou seja, para tudo o que é agradável, cheio de sol e de alegria, tudo isso tem um destino exclusivo – os outros.
Na terceira parte, que compreende o último verso (monóstico), há um apelo do eu lírico: já que está condenado a viver numa angústia profunda, a ter uma existêcia impregnada de solidão, de um vazio deprimente, de uma desventura inaudita, então o melhor é darem-lhe o bicarbonato de soda: “Dêem-me de beber…”. A sua sede não é física (“… que não tenho sede!”), é essencialmente psicológica e pode ser que o bicarbonato de soda consiga mesmo aplacar o seu enjoo, o seu tedium vitae exasperante.
A imagem que o sujeito da enunciação deixa transparecer de si próprio não é muito positiva. Com efeito, vemo-lo invadido pela angústia, completamente entregue à sua sorte madrasta, abandonado pelos pseudo-amigos (“Que amigos que tenho tido!”), com todas as expectativas goradas (“Que esterco metafísico os meus propósitos todos!), desiludido e desconsolado até ao âmago do seu ser (“Uma desconsolação da epiderme da alma”). Não admira, pois, que se deixe cair na abulia, numa passividade mórbida (“Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...”) e daí a renegação e o desprezo que nutre por tudo aquilo que ainda poderia servir-lhe como um lenitivo para a sua dor de alma (“Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles”), sendo, porém assolado por uma dúvida existencial: deverá continuar a existir (que não a viver) ou suicidar-se? Opta pela primeira hipótese, embora saiba de antemão, roído por um pouco de inveja, diga-se, que tudo o que há de bom na vida não é para si: “Que verão agradável dos outros!”. Sem esperanças, sem encontrar uma lógica para as coisas, lança um último apelo: pede para lhe darem a beber o bicarbonato de soda. Não que tenha sede, porque o seu problema não é de índole física, mas psicológica: "Dêem-me de beber, que não tenho sede!". E talvez, assim, consiga amenizar o seu sofrimento.
Ao longo do texto, o sujeito poético deixa transparecer a ideia de que há uma relação de distanciamento e de nítido contraste entre a sua situação e a dos “outros”. E fá-lo não sem evidenciar uma certa ironia, mescalada de mágoa. E isso porque esperava, porventura, no meio de tanta angústia, ter recebido mais solidariedade, mais comprensão, mais apoio e carinho por parte dos seus amigos, o que não se verificou. Daí o seu lamento irónico - “Que amigos que tenho tido!” -, uma frase exclamativa, onde o primerio “que” surge na sua qualidade de advérbio de intensidade (= quantos), intensificando, assim, o valor irónico da afirmação e, logicamente, reforçando a ideia da sua solidão, que está na origem da sua incontornável angústia. Na parte final do poema, vislumbramos, entretanto, uma certa inveja do eu da enunciação em relação aos “outros”, resultante das situações antagónicas experienciadas: ele vive numa amargura atroz, tendo perdido toda a esperança de regeneração; os “outros” vivem (pelo menos ele pensa isso) felizes, sem preocupações – “Que verão agradável dos outros!”; ele, por seu lado, e por inferência, não!...
O último verso do poema contém um paradoxo, porque o eu da enunciação pede para lhe darem de beber e, concomitantemente, assevera que não tem sede. Estamos, pois, perante uma frase aparentemente ilógica. Essa ilogicidade poderá sugerir os estados de inquietação, de confusão, de um quase delírio que corroem a alma do sujeito poético, mas traduz preferencialmente a ideia de alguém que, sentindo-se psicologicamente doente, pede para lhe darem a beber bicarbonato de soda, com o óbvio intuito de suavizar as suas dores. Dores morais que não físicas – entenda-se – como já foi atrás referido, pois ele, fisiologicamente falando, não está com sede, até porque, como vimos no poema, reiteramente, tinha afiançado a sua vontade de querer EXISTIR: “… vou existir. Arre! Vou existir.. / E-xis-tir.../ E--xis--tir ...”.
De entre os vários recursos estilísticos, podem ser referidos: a elipse (v.1), que reforça a ideia de que o eu poético se sentiu repentinamente angustiado; a repetição anafórica e a exclamação do v. 2 (“que angústia, que náusea do estômago à alma!”), a intensificarem o seu estado de desespero, de nojo de si mesmo, com implicações quer físicas quer espirituais; a metáfora (v.5), para reforçar a sensação de inutilidade e de fracasso do eu lírico que vê todos os seus projectos gorados; a anáfora, em crescendo (“Renego/ Renego tudo./ Renego mais do que tudo.”), para acentuar o estado de negação do eu da enunciação; as interrogações retóricas nos vv. 8 e 9, da 2.ª estrofe, a acentuarem a perplexidade de um "eu" em completa desagregação; as oposições que se podem inferir entre a vida passada, a vida presente e a vida futura (vv. 3 e 9), sendo que o passado foi enganador, como que vivido ficticiamente, o presente é de negação e de um sofrimento atroz e o futuro não se prevê muito risonho ("Sem esperança, em liberdade, / Sem nexo, / Acidente da inconsequência da superfície das coisas"), ainda que entremeado por alguns laivos de esperança em melhores dias, resultantes mais de uma força de vontade momentânea e inconsequente ("Não: vou existir. Arre! Vou existir. /E-xis-tir... / E--xis--tir ...") do que de pressupostos coerentes e efectivamente tidos como admissíveis ("Monótono mas dorminhoco, / E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas! / Que verão agradável dos outros!"); o paradoxo ("Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?" - v. 15), a sugerir o estado de incerteza do sujeito poético que quer ultrapassar a situação lastimável em que vive, mas que ao mesmo tempo se interroga sobre se valerá a pena fazê-lo; a anáfora ("Sem.../ Sem..." - vv.23-24, a enfatizar o estado de privação total, própria de um ser desesperado, a viver um e em tedium vitae debilitante porque o "verão agradável" (v. 27) não é seu nem para si, é dos "outros" (v. 27).
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