Imagem de Tiago Alburquerque
O Cavaleiro da Dinamarca
O Cavaleiro da
Dinamarca é um livro de Sophia de Mello Breyner Andresen,
editado em Portugal
em 1964.
A obra conta a história de um
homem que vivia com a sua família numa floresta
da Dinamarca.
Numa noite de Natal,
durante a ceia,
quando todos estavam reunidos à volta da lareira, a comer e a contar histórias,
comunicou-lhes que iria partir em peregrinação à Terra Santa,
para orar onde Cristo
tinha nascido e que, portanto, daquela noite a um ano, não estaria ali.
Prometeu também que, dali a dois anos, estariam juntos de novo. Na Primavera
seguinte partiu e, levado por bons ventos, chegou muito antes do Natal às
costas da Palestina,
onde visitou todos os locais sagrados relacionados com a vida de Jesus. Já de
regresso à Dinamarca, uma tempestade violentíssima quase destruiu o barco em
que viajava e ele teve que ficar em Itália.
Aí conheceu várias cidades (Ravenna, Veneza, Florença, Génova) onde fez diversos amigos, como o Mercador de Veneza,
que lhe contou a belíssima história de amor de Vanina e Guidobaldo, de Giotto e
de Dante,... Após inúmeras *peripécias, consegue chegar à floresta em que
vivia, mas uma tempestade quase lhe provoca a morte. No entanto, anjos acendem
pequenas estrelas no abeto
que ficava em frente à sua casa, guiando-o até ao calor do seu lar e de sua
família...
Quando ele ia pela floresta,
ele pensou que o gelo do rio estaria gelado e que poderia segui-lo até sua casa,
mas não encontrou o rio... Ele foi andando sempre em frente sem destino e mais
ao longe viu uma luz que se destacava pela sua grandeza... Esta, era a luz de
sua casa. O cavaleiro não sabia disto, mas ainda assim resolveu ir atrás da
luz, encontrando a sua casa. É por essa razão que se enfeitam os pinheiros no
Natal e essa é a grande história do cavaleiro da Dinamarca.
Situar a acção no tempo:
“Há
muitos anos, há dezenas e centenas de anos...”
Situar a acção no espaço:
“havia em certo lugar da Dinamarca, no extremo Norte do
país, perto do mar, uma grande floresta de pinheiros, tílias, abetos e
carvalhos. Nessa floresta morava com a sua família um Cavaleiro. Viviam numa
casa construída numa clareira rodeada de bétulas. E em frente da porta da casa
havia um grande pinheiro que era a árvore mais alta da floresta.” (2º
parágrafo)
Nota a
indefinição/imprecisão temporal e espacial: Há muitos anos, há dezenas e
centenas de anos, havia em certo lugar...
No entanto, no que concerne ao espaço, regista-se uma
gradação no sentido do geral para o particular. Assim temos:
Dinamarca → Norte do país → floresta → casa na clareira →
em frente à porta – um Pinheiro.
É importante esta referência e relevância que é dada
ao Pinheiro, pois esta árvore é um elemento fundamental na história do conto.
Ele é-nos referido novamente no final da história e é graças a ele, como veremos,
“farol de regresso”, que o Cavaleiro consegue chegar até sua casa.
Recorde-se que o pinheiro é considerado, entre os
orientais, o símbolo da imortalidade. Talvez a presença e referência a este
símbolo no início do conto constitua, precisamente, um prenúncio votivo de uma
empresa bem sucedida por parte do Cavaleiro, até porque o espírito que lhe
presidiu foi o seu sentimento religioso, a fé.
A noite de Natal em casa do Cavaleiro:
.
juntava-se a família
.
vinham amigos e parentes, criados da casa e servos da floresta
. em
frente da lareira armava-se uma enorme mesa para todos
.
comiam, riam e bebiam vinho quente e cerveja com mel
.
narravam-se histórias:
- de
lobos e ursos
- de
gnomos e anões
- de
Tristão e Isolda
- de
Alf, rei da Dinamarca e de Sigurd
- dos
reis Magos, dos pastores e dos Anjos
A acção principal, que é constituída pela viagem (ida
e regresso) do Cavaleiro, irá levar pouco menos de dois anos e que o destino é a
Palestina. Portanto a acção irá decorrer num espaço amplo e heterogéneo
constituído pelo itinerário estabelecido pelo Cavaleiro desde a Dinamarca até à
Palestina e vice-versa. Esta notícia da partida foi acolhida por todos com
espanto, com tristeza e inquietação, mas ninguém, nem a mulher, apesar de
naquele tempo as viagens serem longas, perigosas e difíceis, ousou dissuadir o Cavaleiro
de partir, pois movia-o um sentimento nobre, o sentimento religioso, a sua fé.
Chegada a Primavera, o Cavaleiro deixou a sua
floresta e dirigiu-se para a cidade mais próxima, que era um porto de mar.
Nesse porto embarcou e chegou muito antes do Natal às costas da Palestina. Daí seguiu
com outros peregrinos para Jerusalém.
As acções praticadas pelo Cavaleiro em
Jerusalém:
-
visitou um por um os lugares santos
-
rezou no Monte Calvário e no Jardim das oliveiras
-
lavou a sua cara nas águas do Jordão
-
viu as águas azuis do lago de Tiberíade
-
procurou, no testemunho mudo das pedras, o rasto de sangue e sofrimento
de Jesus Cristo
-
caminhou nos montes da Judeia
No dia de Natal, o Cavaleiro:
.
dirigiu-se para a gruta de Belém
.
rezou toda a noite:
-
pelo fim das misérias e das guerras;
-
pela paz e pela alegria do mundo
.
julgou ouvir a oração dos anjos
.
desceu sobre ele uma grande paz e confiança
.
beijou as pedras da gruta
.
pediu a Deus que o fizesse um homem de boa vontade
. pediu aos anjos que o protegessem e guiassem na viagem
de regresso, para que, daí a um ano, pudesse celebrar o Natal com os seus
Passado o Natal, o Cavaleiro demorou-se ainda dois
meses na Palestina, só partindo de Jerusalém para o Porto de Jafa em finais de Fevereiro.
Foi nesta ocasião que travou grande amizade com um outro peregrino, um mercador
de Veneza, em casa do qual se irá hospedar.
Inicia-se assim a sua viagem de regresso, mas, em
Jafa, surge o primeiro dos contratempos, pois devido ao mau tempo só puderam embarcar
em meados de Março. Curioso será então notar que foi em Março que iniciou a
viagem com destino à Palestina e acaba por ser também em Março que se despede
da Palestina e inicia a sua viagem de regresso à Dinamarca.
Já no mar surge um segundo contratempo, uma tempestade.
Caracterização da tempestade:
- O navio ora subia na crista da vaga ora recaía
pesadamente estremecendo de ponta a
ponta.
-Os
mastros e os cabos estalavam e gemiam.
- As
ondas batiam com fúria no casco e varriam a popa.
- O
navio ora virava todo para a esquerda, ora virava todo para a direita.
- Os
marinheiros davam à bomba.
- O
vento rasgava as velas em pedaços.
- Navegavam
sem governo ao sabor do mar.
A violência da tempestade era tal que o Cavaleiro já
pensava que não voltaria a ver a sua terra. Mas, passados cinco dias, a
tempestade passou e, içando velas novas e com a brisa soprando a favor, conseguiram
chegar, apesar do mau estado do barco, ao porto da cidade de Ravena, na costa
do Adriático, nas terras de Itália.
A beleza de Ravena enchia de espanto o Cavaleiro.
Ravena:
- As belas
igrejas
- As altas naves
- Os leves arcos
- As finas
fileiras de colunas
- Os mosaicos
multicolores com esguias figuras de rainhas e santos
Visto o navio não estar em condições para poder
seguir viagem, o Mercador de Veneza convidou o Cavaleiro para seguir com ele
até à sua cidade, pois se Ravena o espantava, Veneza, construída sobre as águas,
deslumbrá-lo-ia ainda mais e, de lá, poderia seguir por terra para o porto de
Génova donde partem constantemente navios para a Flandres e, assim, ficaria a
conhecer as belas e ricas cidades do Norte da Itália.
A referência à opulência e prosperidade das cidades
do Norte da Itália é um indicador do tempo cronológico da narrativa principal,
pois sabemos que as cidades italianas foram palco de um grande desenvolvimento
comercial, económico e cultural no século XV.
O Cavaleiro decidiu aceitar o convite do Mercador e
seguiu com ele para Veneza.
Veneza:
- As ruas eram
canais onde deslizavam estreitos barcos finos e escuros.
-
Os palácios cresciam das águas que reflectiam os mármores, as pinturas,
as colunas.
-
Aérea e leve a cidade pousava sobre as águas verdes, ao longo da sua própria
imagem.
- Vozes, risos,
canções e sinos enchiam o ar da tarde.
- tanta riqueza e
tanta beleza.
É neste espaço propício às histórias de encantar que surge
a primeira das quatro narrativas de encaixe, a história de Vanina,
uma história secundária, mas também ela encantadora, bem ao gosto romanesco.
Vanina, a rapariga mais bela de Veneza, era orfã de
pai e mãe e estava sob a tutela de Jacob Orso. Este prometera-a em casamento a Arrigo.
Como Vanina se recusara a casar com ele, por o achar velho e feio, o seu tutor,
como castigo pela sua desobediência, mantinha-a enclausurada em casa, sempre
vigiada pelas aias. Só à noite, quando todos dormiam, é que Vanina encontrava
um pouco de liberdade e ia então para a varanda do quarto pentear os seus belos
e perfumados cabelos.
Certo dia passou pelo canal, em frente à varanda onde
Vanina se penteava, um belo e destemido navegador chamado Guidobaldo.
Vanina e Guidobaldo apaixonaram-se e, como Jacob Orso
tivesse recusado a mão de Vanina a Guidobaldo e o ameaçasse de morte se ele não
saísse da cidade, Guidobaldo partiu, mas levou com ele Vanina e nunca mais
foram encontrados.
E foi assim que, em conversas, festas, ceias e
passeios, se passou um mês e o Cavaleiro anunciou a sua intenção de prosseguir
viagem, recusando o convite do Mercador para se associar aos seus negócios e estabelecer
a sua vida em Veneza.
Passados três dias, partiu em direcção a Génova com
cartas de apresentação para ser recebido pelos homens mais nobres das cidades do
Norte da Itália. Estava-se em Abril. Aconselhado pelo Mercador, decidiu no
entanto fazer, a meio da viagem para Génova, um desvio para conhecer a célebre
cidade de Florença. Passou por Ferrara, Bolonha e, no princípio de Maio, chegou
a Florença.
Florença, com os seus telhados vermelhos, as suas
torres, as suas cúpulas, os seus campanários, as igrejas de mármore preto e
branco, as muitas estátuas, espantou o Cavaleiro, tal como o havia espantado a beleza
de Veneza.
Em Florença, o Cavaleiro, com a carta de apresentação que
lhe dera o Mercador de Veneza, procurou a casa do banqueiro Averardo e aí ficou
hospedado.
Florença em casa do banqueiro Averardo:
-
discutiam os movimentos do Sol10 e da luz
-
discutiam os mistérios do céu e da Terra
-
falavam de Matemática, de Astronomia, de Filosofia
-
falavam de estátuas antigas
-
falavam de pinturas acabadas de pintar
-
falavam do passado, do presente e do futuro
-
falavam de poesia, de música e de arquitectura.
Em
suma: Parecia que toda a sabedoria da Terra estava reunida naquela sala.
Ora, foi precisamente numa dessas ocasiões, em que o
teor da conversa era a obra de Giotto, que o Cavaleiro, não sabendo de quem se
tratava, com uma simples pergunta: - Quem é Giotto? – dá origem ao aparecimento
da segunda história encaixada, cujo narrador é Filippo.
É extremamente importante a reposta que Filippo dá a esta
pergunta pela referência temporal que é feita, pois quando Filippo diz que Giotto
é um pintor do século passado, permite-nos tirar ilações quanto ao tempo
cronológico em que se desenrola a história do Cavaleiro.
Com efeito, Giotto foi um pintor italiano nascido em 1266
ou 1267, e falecido em 1337. Assim sendo, ficamos a saber que a história da viagem
do Cavaleiro decorre no século XV.
No final desta história encaixada, faz-se referência
a uma outra figura - Dante: Giotto tornou-se assim o pintor mais
célebre daquele tempo. E Dante, que ele retratou e que foi seu amigo
fala dele no seu poema. O desconhecimento desta figura por parte do
Cavaleiro suscita por parte deste uma nova pergunta: - Quem era Dante?-
que vai introduzir, assim, uma terceira história encaixada, a partir do momento
em que Filippo satisfaz, mais uma vez, a curiosidade do Cavaleiro. Com efeito,
a breve apresentação de
Dante, feita por Filippo: Dante foi o maior poeta da
Itália, um poeta que conhecia os segredos deste mundo e do outro, pois viu vivo
aquilo que nós só veremos depois de mortos, foi de tal forma surpreendente
que o Cavaleiro não resistiu a pedir que lhe contasse essa história tão
extraordinária e surge, assim, a terceira história encaixada narrada por
Filippo e cujo protagonista é Dante.
Dante, apenas com nove anos, apaixonou-se por Beatriz
que tinha oito anos e que era a criança mais bela de Florença. Mas Beatriz
morreu em plena juventude e Dante, não
conseguindo superar o desgosto, entregou-se a uma vida de loucuras e erros, até
que no ano de 1300, numa sexta-feira Santa se encontrou perdido numa floresta
escura e selvagem onde lhe apareceram um leopardo, um leão e uma loba.
Nota que estes elementos têm um valor simbólico.
Assim, a selva escura representa os erros e desvios da condição humana. Podemos
então concluir que esta selva escura em que Dante se encontrou foi precisamente
o cair em si, o tomar consciência da vida desregrada que vinha vivendo. As três
feras que aparecem a Dante correspondem a outras tantas disposições
pecaminosas. O leopardo é interpretado como um símbolo da luxúria, o leão como
um símbolo da soberba, e a loba como um símbolo da avareza. Correspondiam às
três grandes divisões do Inferno, isto é, às três disposições que o céu não
queria e das quais se entendia derivarem todos os pecados.
Valeu a Dante a sombra de Virgílio que fora enviada
por Beatriz para conduzir Dante até ela. Primeiro passaram a porta do Inferno sobre
a qual se encontra a inscrição: Vós que entrais deixai toda a esperança.
Depois atravessaram os nove círculos onde se encontram os condenados. Aqui
viram:
Nove círculos:
- viram os que
estão cobertos por chuvas de lama
- viram os que
são eternamente arrastados em tempestades de vento
- viram os que
moram dentro do fogo
- viram os
traidores presos em lagosde gelo
Inferno:
- Por toda a
parte reinava a escuridão como numa mina.
- Por toda a
parte se erguiam monstros e demónios
-
Era um reino subterrâneo, sem sol, sem lua e sem estrelas, iluminado apenas
pelas chamas infernais
Finda a visita ao Inferno, voltaram à luz do sol e
chegaram ao Purgatório, descrito como um monte no meio de uma ilha
subindo para o céu.
Aqui encontram-se as almas que, através de preces e
penitências, aguardam o perdão e a admissão ao Paraíso.
Por fim chegaram ao cimo do monte do Purgatório onde fica
o Paraíso Terrestre e foi aí que se deu o reencontro de Dante com Beatriz.
Então esta explicou-lhe que o objectivo de o levar a fazer aquela viagem foi
para que ele tivesse consciência do quanto sofrem os injustos e pecaminosos e
se emendasse, para que fosse digno da felicidade e alegria que reina no céu.
Pediu-lhe ainda que, ao voltar à terra, escrevesse um livro onde contasse tudo
o que viu, de modo a ensinar os homens a detestarem o mal e a desejarem o bem.
Dante assim fez e esse livro é A Divina Comédia.
Terminada a narração desta viagem de Dante através do
reino dos mortos, o Cavaleiro confessa ter sido a história mais extraordinária
que já alguma vez ouviu.
O fascínio do Cavaleiro por tudo o que ouvia naquela
casa era tal que resolveu demorar-se aí mais algum tempo. Assim:
- percorria as
ruas e as praças
- visitava os
conventos, os palácios, as bibliotecas e as igrejas
- ouvia as sábias
conversas dos amigos de Averardo
Mas nem todo este espanto e entusiasmo por Florença,
nem mesmo o convite que o banqueiro Averardo fez ao Cavaleiro para se estabelecer
em Florença e associar-se aos seus negócios, o demoveram de cumprir a promessa
feita à família: - Quero passar com eles o próximo Natal como lhes
prometi. Dentro de três dias terei de partir. E assim foi, tendo-lhe sido
dada uma carta de recomendação para um rico comerciante da Flandres, amigo do
banqueiro Averardo.
Dirigia-se então para Génova o Cavaleiro, para
embarcar no porto num dos navios que, no princípio do Verão, sobem de Itália
para Antuérpia. Mas outro imprevisto acontece ao Cavaleiro: adoece, devido
talvez ao sol escaldante ou à água não potável que bebera pelo caminho e vê-se
obrigado a pedir guarida num convento. Aí, foi
acolhido e tratado pelos frades com chás de raízes de
flores, com pílulas de aloés, com xaropes de mel e vinho quente, com pós
misteriosos e emplastros de farinhas e ervas.
A estada do Cavaleiro no convento foi de dois meses e
meio, pois, apesar de a febre ter baixado passado um mês e meio, o seu estado
de debilidade não lhe permitia continuar viagem, tendo de ficar mais um mês a
recuperar as suas forças.
Restabelecido, continuou a sua viagem para Génova, mas,
quando lá chegou, era já final de Setembro e todos os navios com destino à
Flandres haviam já partido. É então que o Cavaleiro, fiel à sua promessa feita
à família, resolve continuar a viagem por terra, a cavalo, até Bruges. Parava
apenas o necessário para comer e dormir, pois como era um homem de palavra, queria
chegar antes do Natal à sua terra. Chegado à Flandres, onde caíam já os
primeiros flocos de neve e fazia já um frio de Inverno, o Cavaleiro dirigiu-se
para Antuérpia, onde procurou o negociante flamengo para quem o banqueiro
Averardo lhe dera uma carta de recomendação.
Em Antuérpia é bem recebido pelo Flamengo e, à semelhança
do que lhe aconteceu em Veneza e Florença, o Cavaleiro vai também aqui
espantar-se e deleitar-se com alguns aspectos. Um desses aspectos é o paladar
diferente da comida, é que esta estava temperada com especiarias desconhecidas
para o Cavaleiro. Isto levou o Flamengo a afirmar que o Cavaleiro conhecia mal
o mundo novo. O Cavaleiro, para lhe provar o contrário, narra-lhe então a
história da sua viagem até chegar ali e, embora o Flamengo reconheça que é uma
bela história, disse-lhe que não tardaria a chegar alguém que lhe iria contar
histórias muito mais espantosas. Mal o Flamengo acabara de dizer isto, chegou
um dos capitães dos seus navios que havia regressado de uma viagem e trazia com
ele três cofres: um cheio de pequenas pérolas, outro cheio de ouro, e o
terceiro cheio de pimenta. Também isto deixou o Cavaleiro espantado e curioso,
a ponto de pedir ao capitão que lhe falasse das suas viagens.
Passamos então, a partir daqui, a ter o capitão dos
navios como narrador das viagens marítimas por ele protagonizadas, estamos, portanto,
na presença de um narrador participante. Deu-lhe então a conhecer que viajara
por todos os portos da Europa, desde o mar Báltico até ao Mediterrâneo, embora
navegasse sobretudo entre os
portos da Flandres e da Península Ibérica. Mereceu, no
entanto, destaque a narração de uma história em que, com o desejo de ir mais longe
do que o habitual, resolveu alistar-se nas expedições portuguesas que navegam
para o Sul à procura de novos países. Este dado é também importante, pois
sabemos que o período áureo dos descobrimentos portugueses é o século XV, o que
aliás vem corroborar a ilação tirada relativamente ao tempo cronológico da narrativa
principal, através da história de Cimabue e Giotto e também através da de
Dante.
Essa história é a que se inicia em Lisboa e que tem
como objectivo explorar as costas de África. As páginas que se seguem são um
testemunho histórico, descrevem-nos as belas praias da costa africana bem como
os seus habitantes e revelam-nos as tentativas de entendimento entre ambas as
partes, dificultadas pelo facto de a língua não ser comum. Ora, é precisamente
numa dessas tentativas que surge a história do incidente ocorrido com o
português Pêro Dias e que constitui a última das narrativas de encaixe
existentes nesta obra.
Assim um dia a caravela ancorou em frente duma
larga e bela baía rodeada de maravilhosos arvoredos. Na longa praia de areia
branca e fina um pequeno grupo de negros espreitava o navio. Então o capitão
resolveu mandar a terra dois batéis com homens para que tentassem estabelecer
contacto com os africanos.
É assim que se inicia a história encaixada de Pêro
Dias, primeiro com uma pequena descrição do local de desembarque e depois com a
apresentação do objectivo do capitão: estabelecer contacto com os africanos.
Seguidamente é-nos apresentada a personagem que vai
protagonizar esta narrativa de encaixe: Pêro Dias.
Mas logo que os batéis tocaram a areia os negros
fugiram e desapareceram no arvoredo.
-Talvez tenham tido medo por ver que nós somos muitos e
eles poucos – disse um português chamado Pêro Dias. E pediu aos seus
companheiros que lhe deixassem um batel e embarcassem todos no outro e se
afastassem da praia.
De seguida narram-se as tentativas de Pêro Dias para
estabelecer contacto com um indígena: primeiro através da oferta de panos coloridos,
depois através da linguagem verbal, e por fim através da linguagem gestual. Mas,
quando tudo parecia estar a correr como Pêro Dias pretendia, restando já apenas
alguns passos de distância entre ele e o indígena, um gesto inofensivo da sua
parte assustou o indígena que começou a fugir e que, ao ver-se perseguido e
agarrado por Pêro Dias e julgando-se perdido, apontou a sua lança, tendo Pêro
Dias procurado aparar o golpe com a sua espada. O resultado foi a morte de
ambos, sendo a causa o desentendimento das línguas, a incapacidade de manter um
diálogo.
Quando os
companheiros de Pêro Dias chegaram à praia, disse um deles: - Olhem, o
sangue deles é exactamente da mesma cor. Os companheiros de Pêro Dias
espetaram entre os dois túmulos, o de Pêro Dias e o do gentio, uma cruz feita
com a lança do gentio e a espada do cristão, como símbolo da paz e união entre
as duas raças.
Estas histórias de longínquas viagens, de ilhas desertas,
de árvores descomunais, de tempestades e calmarias, de povos misteriosos de
pele sombria fascinavam o Cavaleiro, mas era já Novembro e ele anunciou a sua
pretensão de seguir viagem por mar para a Dinamarca. Mas nesta época, com o frio
a aumentar de dia para dia, o Cavaleiro já não encontrou nenhum navio que se
aventurasse a navegar para o Norte. Mas nem isto, nem o convite do flamengo
para se associar a ele e empreender fabulosas viagens que o enriqueceriam, o
demoveram de procurar cumprir a promessa feita à família: passar o Natal em
casa; por isso decidiu fazer a viagem por terra, apesar dos riscos que iria
correr. Foi, com efeito, uma viagem dura:
Viagem da flandres
à Dinamarca:
- os rios estavam
gelados
- a terra coberta
de neve
- o frio
aumentava
- os dias eram
cada vez mais curtos
- os caminhos
pareciam não ter fim
E à noite, quando repousava nas estalagens, o
Cavaleiro sonhava com os palácios de Veneza, com as estátuas de Florença e os
negros nus da costa africana. Mas isto, que outrora o fascinara tanto, surgia agora
como um pesadelo que, girando à sua volta, o impedia de continuar viagem.
Talvez isto não passasse da sua própria consciência a sentir-se culpada por se
ter demorado tanto, deleitado com o que via e ouvia.
Mas, apesar de lhe parecer que todas as forças da Natureza
se tinham conjugado para o impedir de cumprir a sua promessa, ele, homem de fé
e de palavra, recobrava o ânimo e prosseguia a sua viagem. E assim foi, até
que, passadas longas semanas, na antevéspera do Natal, ao fim da tarde, chegou
a uma pequena povoação que ficava a poucos quilómetros da sua floresta. Aí
recuperou as suas forças e, na madrugada de 24 de Dezembro, partiu, pois tinha
de chegar a casa antes da meia -noite e o dia era curto e a travessia da
floresta difícil, pois estava coberta de neve. Penetra então na floresta, onde irão
decorrer as últimas peripécias da viagem do Cavaleiro. Após dois anos de
ausência, esta parecia -lhe fantástica e estranha.
Descrição da
floresta:
- tudo estava
imóvel, mudo, suspenso
- o silêncio e a
solidão pareciam assustadores e desmentidos
- as árvores
estavam despidas
- os ramos nus
desenhavam-se negros, esbranquiçados, avermelhados
- só os pinheiros
cobertos de agulhas continuavam verdes
Assim, apesar de a neve ter apagado todos os rastos,
todos os carreiros, e de a floresta constituir um autêntico labirinto de
arvoredo, o Cavaleiro prosseguiu, procurando chegar, ainda com dia, a uma pequena
aldeia de lenhadores que ficava perto do rio que passava junto de sua casa.
Depois bastaria seguir o curso do rio. E, caminhando em direcção ao nascente,
acabou por chegar à aldeia de lenhadores. Aí foi recebido com entusiasmo e
alegria, recobrou as suas forças e partiu nessa mesma noite, apesar dos avisos dos
lenhadores de que seria perigoso. É que, agora, que estava tão perto, não
queria faltar ao prometido à família, pois iria estragar-lhes o Natal, já que
pensariam que alguma coisa má lhe teria acontecido.
Procurou então seguir o curso do rio, mas a neve caía
espessa e cerrada e o Cavaleiro não conseguia ver nada. Pensou que talvez se
tivesse enganado, mudou de direcção, mas o homem e o rio não se encontravam.
Acabou por se confessar perdido, mas, mesmo assim, não perdeu a sua esperança,
nem mesmo quando lhe surgiu uma alcateia ou até mesmo um urso, pois em ambas as
ocasiões, arreigado à sua fé disse: - Hoje é noite de trégua, noite de
Natal, e, com efeito, como que pormilagre, as feras recuavam ao ouvir estas
palavras e desapareciam. E o Cavaleiro continuava a caminhar ao acaso, levado
por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. E quando o cavalo já
se recusava a continuar, o Cavaleiro lembrou-se da Noite de Natal que passara
em Jerusalém e dos reis Magos que tinham lido no céu o seu caminho. No entanto,
o céu ali era escuro, mas, mesmo assim o Cavaleiro rezou e, milagrosamente, uma
claridade começou a surgir do meio da massa escura do arvoredo. O Cavaleiro,
feliz pela sua reza ter sido ouvida, avançou em direcção a essa luz que julgava
ser a de uma fogueira de algum lenhador perdido. Mas a luz continuava a
crescer e à medida que crescia, subindo do chão para o céu, ia tomando a
forma dum cone. E quando chegou diante da claridade, o Cavaleiro viu que
estava na clareira de bétulas onde ficava a sua casa e que aquela fogueira era
o grande abeto que ficava junto dela e que estava coberto de luzes. Luzes que só
poderiam ter sido lá colocadas pelos anjos do Natal para guiar o Cavaleiro.
E assim termina a saga do Cavaleiro. E diz-se que foi
graças a esta história que surgiu o hábito de se enfeitarem os pinheiros na
noite de Natal, para guiarem todos aqueles que se encontram perdidos.
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