terça-feira, 5 de junho de 2018

Há poesia nas flores


Se às vezes digo que as flores sorriem 
E se eu disser que os rios cantam, 
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores 
E cantos no correr dos rios... 
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos 
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios. 
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes 
À sua estupidez de sentidos... 
Não concordo comigo mas absolvo-me, 
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza, 
Porque há homens que não percebem a sua linguagem, 
Por ela não ser linguagem nenhuma. 


Alberto Caeiro



Flor que não dura 
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura 
Persiste no meu pensamento. 

Não te perdi 
No que sou eu, 
Só nunca mais, ó flor, te vi 
Onde não sou senão a terra e o céu. 


Fernando Pessoa




Flor de Ventura


A flor de ventura 
Que amor me entregou, 
Tão bela e tão pura 
Jamais a criou: 

Não brota na selva 
De inculto vigor, 
Não cresce entre a relva 
De virgem frescor; 

Jardins de cultura 
Não pode habitar 
A flor de ventura 
Que amor me quis dar. 

Semente é divina 
Que veio dos Céus; 
Só n’alma germina 
Ao sopro de Deus. 

Tão alva e mimosa 
Não há outra flor; 
Uns longes de rosa 
Lhe avivam a cor; 

E o aroma... Ai!, delírio 
Suave e sem fim! 
É a rosa, é o lírio, 
É o nardo, o jasmim; 

É um filtro que apura, 
Que exalta o viver, 
E em doce tortura 
Faz de ânsias morrer. 

Ai!, morrer... que sorte 
Bendita de amor! 
Que me leve a morte 
Beijando-te, flor. 


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas' 






A Flor do Sonho


A Flor do Sonho, alvíssima, divina, 
Miraculosamente abriu em mim, 
Como se uma magnólia de cetim 
Fosse florir num muro todo em ruína. 

Pende em meu seio a haste branda e fina 
E não posso entender como é que, enfim, 
Essa tão rara flor abriu assim! ... 
Milagre ... fantasia ... ou, talvez, sina ... 

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos, 
Que tem que sejam tristes os meus olhos 
Se eles são tristes pelo amor de ti?! ... 

Desde que em mim nasceste em noite calma, 
Voou ao longe a asa da minha’alma 
E nunca, nunca mais eu me entendi ... 


Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas" 


















Dai-me rosas e lírios

Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores
Quaisquer flores, logo que sejam muitas...
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores,
Nem isso... Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço 
Que me deis flores...
Sejam essas as flores que me deis...
Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio, 
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança
Com a cabeça encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.
O homem que apara o lápis à janela do escritório 
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis e aparar lápis e gente que os apara à janela, é tão estranho!
É tão fantástico que estas coisas sejam reais! 
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dor de cabeça.
A flor caída no chão.
A flor murcha (rosa branca amarelecendo)
Caída no chão...
Qual é o sentido da vida?

Fernando Pessoa




Sem comentários: