A vanguarda e o
sensacionismo
A segunda fase de
Álvaro de Campos, a fase futurista, revela a influência de Walt Whitman (poeta
americano - 1819 / 1892 - que cantou o mundo moderno), e a de Marinetti, autor
do Manifesto da Literatura futurista; caracteriza-se pela celebração da
civilização moderna, aliada ao poder da máquina, símbolo do mundo em que
Fernando Pessoa viveu. Os poemas de Álvaro de Campos traduzem, assim, o
enaltecimento da técnica, do progresso e de uma vitalidade e energia
artificiais associados à força, ao movimento e à velocidade que rege a era
industrial. O léxico que introduz campos semânticos do domínio desta nova
civilização, assim como as interjeições, as frases de tipo exclamativo, as
apóstrofes, as enumerações, os polissíndetos, as onomatopeias, o ritmo
impetuoso, exuberante valorizam a intensidade da sensação enquanto fenómeno de
conhecimento da dinâmica da vida moderna e traduzem e desejo do poeta de "sentir
tudo de todas as maneiras". No poema "Passagem das horas",
encontramos a ânsia eufórica do sujeito poético de abarcar a totalidade e a
complexidade das sensações, assim como a autoconsciência que conduz ao
autoconhecimento.
"Sentir
tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
(...)
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
(...)"
O sensacionismo
criado por Mário de Sá-Carneiro e por Fernando Pessoa alicerça a sua doutrina
estética na sensação.
A premissa da
poética de Campos é que a única realidade é a sensação, aliada à dinâmica da
vida moderna e à sua complexidade.
O poema intitulado
"Ode Triunfal", publicado em 1915, no primeiro número de Orpheu, no
qual o poeta canta a beleza da civilização moderna, é um bom exemplo da
exaltação das sensações que conduz ao paroxismo de violência.
"À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida
dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r
eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em
fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados
fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu
sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um
excesso
De expressão de todas as minhas
sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó
máquinas!
(...)
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
(...)"
Para Álvaro de
Campos, a arte é a expressão da nossa consciência das sensações; estas devem
ser expressas de tal forma que se tornem uma sensação para aqueles que
contactam com o objecto de arte criado.
Álvaro de Campos
propõe uma estética não-aristotélica, substituindo uma teoria que se baseia na
ideia de beleza pela ideia de força, afirmando ainda que o artista deve levar
os outros, independentemente da sua vontade, a sentir o que o poeta sentiu.
O culto das
sensações de Álvaro de Campos revela ainda a influência do programa estético de
Marinetti, que identifica e exalta a nova civilização da modernidade e da
técnica.
Atentemos no
excerto do Manifesto da Literatura Futurista, de Marinetti, publicado a 11 de
Maio de 1912 (o texto apareceu oficialmente em 1909, no jornal francês Le
Figaro) que, afinal, dava conta da interdinâmica que se estabelece entre a
sociedade e a literatura. Com efeito, o texto deveria reflectir, ao nível
formal, a morte da individualidade, da subjectividade - rompendo com a tradição
romântica, o texto não é encarado como uma expressão de sentimentos, mas como
um veículo de transmissão de ideias, ao nível da imaginação.
Manifesto da Literatura
Futurista
" - Necessidade de libertação da sintaxe,
dispondo os substantivos ao acaso, de forma espontânea;
- deve usar-se o verbo no infinitivo, para que se
adapte elasticamente ao substantivo e não se sobreponha ao eu do escritor que
observa ou imagina (...);
- deve abolir-se o adjectivo, para que o substantivo
nu conserve o seu valor essencial (...);
- deve abolir-se o advérbio (...) para evitar que ele
dê à frase uma fastidiosa unidade de tom;
- todo o substantivo deve ter o seu duplo, isto é, o
substantivo deve ser seguido, sem conjunção, do substantivo a que está ligado
por analogia (...);
- (...) Deve haver uma gradação de analogia cada vez
mais vasta, estabelecendo relações tanto mais profundas e sólidas, quanto mais
distantes. A analogia nada mais é que o amor profundo que liga as coisas
distantes, aparentemente diversas e hostis. Quando, na minha Battaglia di
Tripoli, comparei uma trincheira hirta de baionetas a uma orquestra, uma
metralhadora a uma mulher fatal, introduzi, intuitivamente, uma grande parte do
Universo num breve episódio de batalha africana.
As imagens não são flores para semear e colher com
parcimónia, como dizia Voltaire. Elas constituem o próprio sangue da poesia.
"A poesia deve ser sequência ininterrupta de imagens novas, sem o que será
pura anemia (...)" É necessário, portanto, abolir na língua o que ela
contenha de imagens estereotipadas, de metáforas desbotadas, isto é, quase
tudo;
- não à categoria de imagens nobres e grandiosas,
elegantes ou vulgares, excêntricas ou naturais (...). O estilo analógico será o
padrão absoluto de toda a matéria e da sua intensa vida;
- para traduzir os movimentos sucessivos de um
objecto, é necessário dar a cadeia das analogias que ele evoca, condensada numa
palavra essencial (...);
- (...) Há necessidade de orquestrar as imagens,
dispondo-as segundo um máximo de desordem;
- deve destruir-se o eu na literatura, isto é, deve
abolir-se toda a psicologia (...) substituindo-a pela matéria (...) com os seus
impulsos directivos, a sua força de compressão, de dilatação, de coesão e de
desagregação, a sua composição molecular ou as suas turbinas de electrões
(...). O calor de um pedaço de ferro ou de madeira é muito mais apaixonante,
para nós, que o sorriso ou as lágrimas de uma mulher. Queremos na literatura a
vida do motor, novo animal instintivo do qual conheceremos o instinto geral,
depois de conhecermos os instintos das diversas forças que o compõem (...). É
necessário sentir o peso e o odor dos objectos, coisa que nunca se fez em
literatura, ouvindo os motores e reproduzindo os seus especialíssimos discursos
humanos."
Em carta ao
Director do Diário de Notícias, a 4 de Junho de 1915, Álvaro de Campos afirma:
"A atitude
principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação, na arte, de
tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjectividade; em
suma: o futurismo é dinâmico e analítico por excelência. (...)
O sensacionismo
pressupõe, assim, a máxima objectividade da palavra, de modo que o conceito que
ela representa coincida com o objecto, o seu referente, conferindo-lhe uma
dimensão icónica.
O sensacionismo
constitui um processo simultaneamente psicológico e estético. Partindo do princípio
de que a sensação é a única realidade, a arte deveria conduzir à decomposição e
análise das sensações, como forma de aumentar a autoconsciência.
É importante
salientar que Fernando Pessoa admitia que as ideias são sensações de coisas que
não se situam no espaço e, por vezes, também não se situam no tempo. O domínio
das ideias não deve, pois, ser confundido com o espaço físico. A arte é, então,
a expressão da nossa consciência das sensações.
Os poemas
sensacionistas de Álvaro de Campos subvertem a concepção de expressão poética
tradicional da subjectividade do "eu" e instauram o desrespeito pelos
cânones estéticos e morais paradigmáticos.
O contacto do
poeta com o sensacionismo advém de um encontro com Alberto Caeiro, no Ribatejo,
após o qual se torna seu discípulo. Álvaro de Campos afirma:
"O que o
mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza; equilíbrio, organismo no delírio e
no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas
com alma."
Contudo,
vanguardista e cosmopolita, "filho indisciplinado da sensação", este
heterónimo pessoano distancia-se do objectivismo do seu mestre Caeiro e capta
as sensações centrando-se no sujeito, que deve proceder à intelectualização das
sensações. Campos afirma: "Os antigos invocavam as Musas. Nós invocamo-nos
a nós mesmos."
A par da "Ode
Triunfal", a "Ode Marítima" é um dos poemas emblemáticos da fase
futurista de Álvaro de Campos. Neste, porém, o poeta expressa não só a apologia
da sensação, mas também a percepção de um ser consciente que desperta para a
vida e para a realidade, uma realidade ainda incompreensível, uma vez que se
encontra contida na metáfora "mar". O poeta caracteriza-se a si mesmo
como aquele que olha para o incerto, captado pelo olhar, um olhar que, de início,
vagueia pelo indefinido e que, posteriormente, se detém no paquete, para logo
deambular visualmente pela "vida marítima" que, qual caleidoscópio,
provoca no "eu" lírico uma miríade de sensações.
"Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de
Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua
maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu
fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no
rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
(...)
Olho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar,
lentamente,
(...)
Parte, deixa-me, torna-te
Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,
Depois o navio a caminho da barra, pequeno e
preto
Depois ponto vago no horizonte (ó minha
angústia!),
Ponto cada vez mais vago no horizonte....
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
(...)
E a hora real e nua como um cais já sem navios,
(...)"
O
sensacionismo de Campos surge como uma nova visão do mundo e como uma nova
forma de percepcionar a criação artística. O poeta defende a premissa de que o
que é exterior deve tornar-se interior ao poeta - este preceito é nítido na
construção do poema "Ode marítima" (atentemos nos versos "Olho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma,
/ E dentro de mim um volante começa a girar,
lentamente,").
O
artista deve ainda partir do geral para o particular (consideremos os versos "Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de
Verão,
/ Olho pro lado da barra, olho pro
Indefinido,
/ Olho e contenta-me ver,
/ Pequeno, negro e
claro, um paquete entrando.") e subordinar
tudo à sua própria sensibilidade - as impressões que dominam o poeta e se
sobrepõem ao real exterior encontram-se nos versos "Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), /
(…)
/ Nada depois, e só eu e a minha tristeza, / (...)
/ E a hora real e nua como um cais já sem navios".
1 comentário:
Gosto de ler as tuas análises.
Aprendo umas coisas...
Obrigado, querida Mena.
Beijo.
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