terça-feira, 11 de setembro de 2012

Álvaro de Campo - Fase futurista



A vanguarda e o sensacionismo

A segunda fase de Álvaro de Campos, a fase futurista, revela a influência de Walt Whitman (poeta americano - 1819 / 1892 - que cantou o mundo moderno), e a de Marinetti, autor do Manifesto da Literatura futurista; caracteriza-se pela celebração da civilização moderna, aliada ao poder da máquina, símbolo do mundo em que Fernando Pessoa viveu. Os poemas de Álvaro de Campos traduzem, assim, o enaltecimento da técnica, do progresso e de uma vitalidade e energia artificiais associados à força, ao movimento e à velocidade que rege a era industrial. O léxico que introduz campos semânticos do domínio desta nova civilização, assim como as interjeições, as frases de tipo exclamativo, as apóstrofes, as enumerações, os polissíndetos, as onomatopeias, o ritmo impetuoso, exuberante valorizam a intensidade da sensação enquanto fenómeno de conhecimento da dinâmica da vida moderna e traduzem e desejo do poeta de "sentir tudo de todas as maneiras". No poema "Passagem das horas", encontramos a ânsia eufórica do sujeito poético de abarcar a totalidade e a complexidade das sensações, assim como a autoconsciência que conduz ao autoconhecimento.

"Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

(...)
Multipliquei-me para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me.
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

(...)"

O sensacionismo criado por Mário de Sá-Carneiro e por Fernando Pessoa alicerça a sua doutrina estética na sensação.
A premissa da poética de Campos é que a única realidade é a sensação, aliada à dinâmica da vida moderna e à sua complexidade.

O poema intitulado "Ode Triunfal", publicado em 1915, no primeiro número de Orpheu, no qual o poeta canta a beleza da civilização moderna, é um bom exemplo da exaltação das sensações que conduz ao paroxismo de violência.

"À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica 
Tenho febre e escrevo. 

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, 

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.


Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! 

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! 

Em fúria fora e dentro de mim, 

Por todos os meus nervos dissecados fora, 

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! 

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, 

De vos ouvir demasiadamente de perto, 

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso 

De expressão de todas as minhas sensações, 

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

(...) 
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.



Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! 

Ser completo como uma máquina! 

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! 

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, 

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento 

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões 

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

(...)"

Para Álvaro de Campos, a arte é a expressão da nossa consciência das sensações; estas devem ser expressas de tal forma que se tornem uma sensação para aqueles que contactam com o objecto de arte criado.
Álvaro de Campos propõe uma estética não-aristotélica, substituindo uma teoria que se baseia na ideia de beleza pela ideia de força, afirmando ainda que o artista deve levar os outros, independentemente da sua vontade, a sentir o que o poeta sentiu.
O culto das sensações de Álvaro de Campos revela ainda a influência do programa estético de Marinetti, que identifica e exalta a nova civilização da modernidade e da técnica.

Atentemos no excerto do Manifesto da Literatura Futurista, de Marinetti, publicado a 11 de Maio de 1912 (o texto apareceu oficialmente em 1909, no jornal francês Le Figaro) que, afinal, dava conta da interdinâmica que se estabelece entre a sociedade e a literatura. Com efeito, o texto deveria reflectir, ao nível formal, a morte da individualidade, da subjectividade - rompendo com a tradição romântica, o texto não é encarado como uma expressão de sentimentos, mas como um veículo de transmissão de ideias, ao nível da imaginação.


Manifesto da Literatura Futurista

" - Necessidade de libertação da sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, de forma espontânea;
- deve usar-se o verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente ao substantivo e não se sobreponha ao eu do escritor que observa ou imagina (...);
- deve abolir-se o adjectivo, para que o substantivo nu conserve o seu valor essencial (...);
- deve abolir-se o advérbio (...) para evitar que ele dê à frase uma fastidiosa unidade de tom;
- todo o substantivo deve ter o seu duplo, isto é, o substantivo deve ser seguido, sem conjunção, do substantivo a que está ligado por analogia (...);
- (...) Deve haver uma gradação de analogia cada vez mais vasta, estabelecendo relações tanto mais profundas e sólidas, quanto mais distantes. A analogia nada mais é que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diversas e hostis. Quando, na minha Battaglia di Tripoli, comparei uma trincheira hirta de baionetas a uma orquestra, uma metralhadora a uma mulher fatal, introduzi, intuitivamente, uma grande parte do Universo num breve episódio de batalha africana.
As imagens não são flores para semear e colher com parcimónia, como dizia Voltaire. Elas constituem o próprio sangue da poesia. "A poesia deve ser sequência ininterrupta de imagens novas, sem o que será pura anemia (...)" É necessário, portanto, abolir na língua o que ela contenha de imagens estereotipadas, de metáforas desbotadas, isto é, quase tudo;
- não à categoria de imagens nobres e grandiosas, elegantes ou vulgares, excêntricas ou naturais (...). O estilo analógico será o padrão absoluto de toda a matéria e da sua intensa vida;
- para traduzir os movimentos sucessivos de um objecto, é necessário dar a cadeia das analogias que ele evoca, condensada numa palavra essencial (...);
- (...) Há necessidade de orquestrar as imagens, dispondo-as segundo um máximo de desordem;
- deve destruir-se o eu na literatura, isto é, deve abolir-se toda a psicologia (...) substituindo-a pela matéria (...) com os seus impulsos directivos, a sua força de compressão, de dilatação, de coesão e de desagregação, a sua composição molecular ou as suas turbinas de electrões (...). O calor de um pedaço de ferro ou de madeira é muito mais apaixonante, para nós, que o sorriso ou as lágrimas de uma mulher. Queremos na literatura a vida do motor, novo animal instintivo do qual conheceremos o instinto geral, depois de conhecermos os instintos das diversas forças que o compõem (...). É necessário sentir o peso e o odor dos objectos, coisa que nunca se fez em literatura, ouvindo os motores e reproduzindo os seus especialíssimos discursos humanos."


Em carta ao Director do Diário de Notícias, a 4 de Junho de 1915, Álvaro de Campos afirma:

"A atitude principal do futurismo é a Objectividade Absoluta, a eliminação, na arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo, subjectividade; em suma: o futurismo é dinâmico e analítico por excelência. (...)

O sensacionismo pressupõe, assim, a máxima objectividade da palavra, de modo que o conceito que ela representa coincida com o objecto, o seu referente, conferindo-lhe uma dimensão icónica.
O sensacionismo constitui um processo simultaneamente psicológico e estético. Partindo do princípio de que a sensação é a única realidade, a arte deveria conduzir à decomposição e análise das sensações, como forma de aumentar a autoconsciência.
É importante salientar que Fernando Pessoa admitia que as ideias são sensações de coisas que não se situam no espaço e, por vezes, também não se situam no tempo. O domínio das ideias não deve, pois, ser confundido com o espaço físico. A arte é, então, a expressão da nossa consciência das sensações.
Os poemas sensacionistas de Álvaro de Campos subvertem a concepção de expressão poética tradicional da subjectividade do "eu" e instauram o desrespeito pelos cânones estéticos e morais paradigmáticos.
O contacto do poeta com o sensacionismo advém de um encontro com Alberto Caeiro, no Ribatejo, após o qual se torna seu discípulo. Álvaro de Campos afirma:

"O que o mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza; equilíbrio, organismo no delírio e no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas com alma."

Contudo, vanguardista e cosmopolita, "filho indisciplinado da sensação", este heterónimo pessoano distancia-se do objectivismo do seu mestre Caeiro e capta as sensações centrando-se no sujeito, que deve proceder à intelectualização das sensações. Campos afirma: "Os antigos invocavam as Musas. Nós invocamo-nos a nós mesmos."

A par da "Ode Triunfal", a "Ode Marítima" é um dos poemas emblemáticos da fase futurista de Álvaro de Campos. Neste, porém, o poeta expressa não só a apologia da sensação, mas também a percepção de um ser consciente que desperta para a vida e para a realidade, uma realidade ainda incompreensível, uma vez que se encontra contida na metáfora "mar". O poeta caracteriza-se a si mesmo como aquele que olha para o incerto, captado pelo olhar, um olhar que, de início, vagueia pelo indefinido e que, posteriormente, se detém no paquete, para logo deambular visualmente pela "vida marítima" que, qual caleidoscópio, provoca no "eu" lírico uma miríade de sensações.


"Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, 

Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, 

Olho e contenta-me ver, 

Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. 

Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira. 

Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo. 

Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio, 

Aqui, acolá, acorda a vida marítima, 
(...)

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, 

E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente, 

(...)

Parte, deixa-me, torna-te 

Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido, 

Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto 

Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), 

Ponto cada vez mais vago no horizonte.... 

Nada depois, e só eu e a minha tristeza, 
(...)
E a hora real e nua como um cais já sem navios, 
(...)"


O sensacionismo de Campos surge como uma nova visão do mundo e como uma nova forma de percepcionar a criação artística. O poeta defende a premissa de que o que é exterior deve tornar-se interior ao poeta - este preceito é nítido na construção do poema "Ode marítima" (atentemos nos versos "Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma, 
/ E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,").
O artista deve ainda partir do geral para o particular (consideremos os versos "Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão, 
/ Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido, 
/ Olho e contenta-me ver, 
/ Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.") e subordinar tudo à sua própria sensibilidade - as impressões que dominam o poeta e se sobrepõem ao real exterior encontram-se nos versos "Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!), / (…) 

/ Nada depois, e só eu e a minha tristeza, / (...) / E a hora real e nua como um cais já sem navios".

1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

Gosto de ler as tuas análises.
Aprendo umas coisas...
Obrigado, querida Mena.
Beijo.