quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Aniversário - Álvaro de Campos




Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos

Este poema apresenta uma viagem através do tempo, através da memória. A recordação da infância motiva um angustiante sentimento de perda, pois esse estádio corresponde, para o o sujeito poético, a uma época feliz, aquela em que ele tinha uma família e era visto por esta como alguém que merecia atenção.
Assim, o passado é associado à vida e o presente é conotado negativamente, correspondendo à morte; ao primeiro momento associa-se uma inconsciência feliz, que se opõe à consciência do horror do presente.

Infância / Passado = Vida = Inconsciência ("Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma")
Versus

Idade adulta / Presente = Morte = Consciência ("O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa"; "É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio..."

O corredor simboliza a perda no tempo - este espaço é uma metáfora do próprio tempo, que se associa ao mito de Cronos, o deus que devora os próprios filhos, ou seja, aquele que os aniquila.
A antítese entre o Passado e o Presente pode ser clarificada através das seguintes linhas isotópicas:

casa -> saúde -> família -> serões -> mesa / loiça / copo -> aparador / doces / frutas = Infância - Passado

humidade do corredor / grelado das paredes (metonimicamente ligado à casa) -> lágrimas -> fósforo (frio) -> fome = Idade adulta - Presente 

Infância - Passado ---------------- Idade adulta - Presente
=
Distância > Perda do amor e do ser:
"A que distância!... (...) O tempo em que
festejavam o dia dos meus anos!"
=
"Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal"

A passagem do tempo significa, para o sujeito poético, a perda do seu próprio ser, enquanto pessoa.

"Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!"

Num plano simbólico, a angústia do sujeito lírico, motivada pela perda, faz ecoar um tempo recuado, um momento de felicidade absoluta, em que, afinal, a sua identidade só existia, porque construída pela vontade e pelas esperanças dos outros, o que lhe conferia um poder messiânico, porque ele era, para eles, uma promessa.

"Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos"

e

"Eu tinha a grande saúde (...)
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim."

O amor era dado ao poeta de forma espontânea, como uma crença.

"E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer."

A idade adulta significa ausência de amor, metaforizado no pão (o corpo de Cristo a que se alia, obviamente, uma dimensão espiritual e metafísica - comer o pão significa, na liturgia cristã, absorver o Amor de Jesus).

"Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal.
(...)
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!"

A "manteiga" associa-se metonimicamente ao leite, símbolo materno; por isso, igualmente situado na constelação semântica dos vocábulos que aglutinam a ideia de amor.

A casa, metáfora do paraíso, o primeiro espaço que, segundo o livro de Génesis, foi habitado pelo Homem, é destruída pelas lágrimas do sujeito poético, ou seja, a sua perda motiva essas lágrimas, mas a sua destruição acontece na interioridade da sua alma.

"(...) (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)"


A expulsão do éden equipara-se, no poema, à perda do amor (ainda segundo o episódio bíblico, o sofrimento humano surge após essa expulsão, ou seja, se, por um lado, o sofrimento do sujeito lírico aponta para a nostalgia profunda que este sente por ter deixado de ser menino, o facto de ele conferir à infância a qualidade da Perfeição remete o leitor para as estruturas simbólicas do imaginário da nossa espécie, enraizadas, como é óbvio, na nossa tradição cultural, marcada pela religião.

No final do poema, o sujeito poético opõe os órgãos "coração" e "cabeça", ligados, respectivamente, ao sentimento e à razão.

"Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!"

E é a "algibeira" que, para o sujeito lírico, significa a impossibilidade de unificar sentimento e razão, isto é, o amor e a racionalidade, porque ele ficou estagnado nas dobras de um destino que é, afinal, o destino humano.


"Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!..."

O sujeito poético exprime, com revolta e amargura, a consciência do niilismo (a consciência do nada) que marca o Homem do século XX.

A desilusão perante a existência, a absorção do indivíduo no anonimato das massas é aqui apresentada como o contraponto de uma época associada à infância (do indivíduo ou da espécie) em que o sujeito lírico acredita ter sido feliz.

Ao nível estilístico, a comparação funciona como tradução de uma dor que trespassa a alma do sujeito lírico e o esmaga contra as suas recordações.


"O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa"

"É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio..."
"Comer o passado como pão de fome (...)"

A anáfora traduz a saudade imensa de um passado que o sujeito poético não pôde roubar e o desespero que essa incapacidade lhe causa.


"O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus! (...)"

A anáfora enfatiza igualmente a constatação amarga do desencanto posterior a esse tempo.


"Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida."

Os adjectivos sugerem quer a alegria da infância remota, perdida num tempo recuado, primordial, quer a distância infinita que separa o "eu" poético dessa época.


"Eu era feliz e ninguém estava morto"

"Na casa antiga (...)
"Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma"
"De ser inteligente para entre a família"

Ao nível do léxico, encontramos vocábulos que se ligam a um mesmo núcleo semântico, a casa, e que apresentam, materializando a dicotomia Passado / Presente, conotações semelhantes. A casa sugere uma simbologia de intimidade, de refúgio, associando-se, por esse facto, à protecção materna, pelo que aparece como metáfora do ventre materno (a fase de ligação à mãe através do cordão umbilical significa, ao nível do inconsciente antropológico, a impossibilidade de estar sujeito às agressões exteriores):


"Na casa antiga (...)"

"A mesa posta com mais lugares (...)"
"O aparador com muitas coisas - doces, frutas (...)"

O verso "O que sou hoje é terem vendido a casa" enfatiza as ideias anteriormente expressas.


No âmbito da pontuação, há a salientar o ponto de exclamação e as reticências que evocam uma infância feliz e também a sua perda irremediável.


"O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui..."

"O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!"
"Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui..."

O "refrão", a repetição, ao longo do poema, do verso "O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!" funciona como uma espécie de refrão e atroa como um esgar nostálgico, retumbando sempre, traduzindo a revolta, a não aceitação do irremediável, a saudade profunda de um tempo perfeito.


Ao nível das sonoridades, predominam, ao longo do poema, os sons fechados e nasais, e numa expressão da melancolia perante a perda do passado.


Sons nasais - tempo, ninguém, antiga, uma, grande, inteligente, esperanças, mim, vim, serões, província, distância, vendido, sobrevivente, viagem, pão, manteiga.


Sons fechados - dia, feliz, antiga, tradição, séculos, religião, tinha, nenhuma, quando, fui, frio, vida, ali, metafísica.


A vogal aberta (a) enfatiza o valor de determinados vocábulos-chave, ao nível semântico, pela intensidade da sua sonoridade (casa; humidade; nada; raiva; roubado).







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