As questões de fundo
relativas à aplicação do Acordo Ortográfico continuam por resolver. Não entrou
em vigor, mas há sectores, tanto oficiais como privados, em que vigora sem
rodeios especiais o princípio do faz-de-conta. Faz-se de conta que o Acordo já
se aplica de pleno e estropia-se alegremente a nossa língua. Jornais e editoras
continuam a fazê-lo da maneira mais bárbara. Há já alguns livros importantes
que saem cheios dos correspondentes aleijões. E eles só não vieram ainda
afectar uma série de clássicos da língua pela razão singela de que cada vez
menos se cura de editá-los e pô-los ao alcance de toda a gente.
Ninguém parece
ter sequer acordado para a necessidade de uma revisão. As duas grafias
coexistem, porque, felizmente, um quotidiano importante e uma grande parte dos
colaboradores da imprensa lusitana se mantêm fiéis à grafia anterior e esta é,
por enquanto, a única que, legalmente, pode e deve ser aplicada. Toda a gente
sabe que é assim e não vale a pena repeti-lo.
É possível que
o lobby das editoras, depois de se ter precipitado na adopção do Acordo em
livros escolares, manuais, dicionários e agora noutras publicações, procure
impor essa coisa sem nome em todos os sectores da vida nacional, em especial no
escolar. Também é possível que o poder não saiba lá muito bem o que fazer,
seguindo e alimentando, neste aspecto, a desorientação das escolas.
Os partidos
políticos com assento parlamentar têm vindo a pactuar, sem excepção, com esse
estado de coisas. Ninguém lucra absolutamente nada com ele. Mas tudo isso redundaria
apenas num simples exercício de humor de gosto discutível, se não se traduzisse
numa violência quotidiana contra a língua. E o certo é que, se as coisas
continuarem assim, dentro de uma geração ninguém conseguirá pronunciar
correctamente a língua portuguesa tal como ela é falada deste lado do
Atlântico.
Por outro lado,
o que interessa, para além da questão jurídica e cultural de fundo, é uma
questão política assaz bizarra. E a questão política actualmente resume-se a
isto: estão a ser aplicadas não uma, mas três grafias da língua portuguesa. A
correcta, em países como Angola e Moçambique, a brasileira (no Brasil) e a
pateta (em Portugal e não se sabe em que outras paragens). Os representantes
dos Estados-membros na CPLP, esses, devem dar pulinhos de corça alvoroçada e do
mais puro regozijo com tão portentoso contributo que a organização deu para
unificar a grafia do português.
Enquanto se
anda nestes preparos, toda a gente se esqueceu do famigerado vocabulário
ortográfico comum. Onde pára o dito? Dele, ninguém sabe dizer nada, como da
formosa Mariquinhas... Até agora, o vocabulário peca pela inexistência pura e
simples e ninguém se preocupou com a superação de tão momentosa dificuldade.
Ora não parece que actualmente, com as restrições que afectam tantas áreas da
investigação e da diplomacia, haja qualquer possibilidade de ele ser
concretizado.
Entre as
consequências relevantes dessa inexistência conta-se a impossibilidade de
aplicar o Acordo de cuja entrada em vigor o vocabulário comum é condição prévia,
por muito que isso pese ao Prof. Evanildo Bechara, que lê a exigência
correspondente como se ela unicamente se reportasse ao vocabulário técnico e
científico. É de lamentar que, na pessoa do ilustre académico, a interpretação
jurídica não consiga acompanhar o saber do linguista emérito.
Alem disso, é
muito de estranhar que, no ano em que o Brasil se apresenta em Portugal e
Portugal se apresenta no Brasil com tanta pompa e circunstância, nenhum dos
países interessados tenha feito qualquer reparo à maneira como a grafia do
português, que se pretende oficial e oficiosamente seja agora adoptada em
Portugal, consagra uma série de enormidades que não estão, nem podem estar, a
ser aplicadas no Brasil e que aumentam a desconformidade com a maneira como a
língua se escreve de um lado e do outro.
Talvez tenhamos
de esperar que se realize um ano de Angola em Portugal e de Portugal em Angola
para o problema merecer atenção. E então não será de estranhar que tenhamos de
agradecer aos angolanos um rigor na grafia da nossa língua de que, por cá, nós
portugueses já não somos capazes.
VASCO GRAÇA MOURA
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