quarta-feira, 16 de maio de 2012

Antes de nós nos mesmos arvoredos - Ricardo Reis









Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

Ricardo Reis

O tema deste poema de Ricardo Reis é o destino humano. 
O poema é uma lição de abnegação e essa lição significa uma tentativa de encontrar a felicidade, pois a vida humana rege-se pelas leis que regem o universo - estas caracterizam-se pela efemeridade que subjaz a qualquer ciclo regenerador.
"Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento (...)"
Os arvoredos aparecem como um espaço fixo; a linguagem das folhas é também intemporal.
"E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje."
É o homem que se apresenta como um elemento móvel, ideia que é apontada pelo referente temporal "Antes de nós (...)".
A árvore simboliza, no poema, o receptáculo das almas dos antepassados; ela representa a vida inesgotável; é equivalente à imortalidade.
A relação do Homem com o Ser é delineada no poema: uma canção primordial, eterna, tece o fio do Ser, de que o Homem é apenas uma parte.
O universo é um todo determinístico - tudo é o resultado de causas prévias; a autonomia individual consiste na aceitação das leis.
"Não fazemos mais ruído no que existe
(...)
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento"
Assim, não vale a pena desejar nada que não esteja de acordo com essas leis. Patenteiam-se aqui as filosofias epicurista e estóica, oriundas da Grécia antiga, que preconizam a abnegação motivada pela constatação da inutilidade do desejo.
"Passamos e agitamo-nos debalde."
A comunhão com a Natureza pressupõe a perda da identidade no Todo, para alcançar a Identidade suprema.

"Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes."


A expressão "mais vida" opõe-se ao adjectivo "verdes":
"mais vida" -> vida interior (dimensão ontológica) -> remete para a vida individual
"verdes" -> símbolo da vida cosmogónica -> aponta para a vida da Natureza, como um Todo -> A cor verde sugere o equilíbrio entre o Homem e a Natureza - esta cor adquire um valor polissémico, associado a simbologia da árvore - nega-se a morte através da própria morte - a natureza conhece a regeneração cíclica, após a morte de determinados elementos, que fazem, automaticamente, parte desse trabalho regenerador.


Encontramos, no poema, a negação da dimensão prometeica do ser humano (Prometeu era, na mitologia clássica, aquele que roubou o fogo aos deuses para o entregar aos homens, o que o levou a sofrer um castigo eterno; o fogo simboliza, no mito, a sabedoria, a vontade que o ser humano sente de ultrapassar a sua condição e de adquirir características divinas). O homem é inserido num mundo uno, situando-se ao mesmo nível que os elementos naturais, aparecendo como parcela finita do infinito que é o Ser - Deus ter-se-ia materializado nos diferentes objectos criados e não apenas no ser humano.
E esta reflexão conduz-nos à concepção platónica da existência, pela oposição entre a "areia" que o poeta vê e a "alta praia".
"Na areia o mar com ondas três o apaga
Que fará na alta praia"
"areia" -> mundo da aparência, que é uma cópia do mundo da Essência
"alta praia" -> mundo da Essência (de notar o valor semântico do adjectivo "alta")
O número três, que aparece na referência às ondas ("ondas três"), associa-se ao destino do Homem e ao mito das três parcas: a primeira dava o fio (da vida), a segunda fiava (a vida do homem na terra) e a terceira cortava o fio (momento que equivale à morte).
O número três liga-se ainda às nereidas (deusas), filhas do Oceano, que personificavam as ondas, na Antiguidade Clássica, e que fiavam, teciam e cantavam. Também a poesia é um processo de criação, que traduz o destino do Homem, remetendo para o acto de "tecer".
O sujeito poético propõe uma visão pagã da existência e defende a integração do Homem na Natureza, constatando a brevidade e a efemeridade da vida humana. A renúncia à acção, pelo reconhecimento da inutilidade da mesma (influência das filosofias epicurista e estóica) surge como a única atitude que conduz à tranquilidade.

Estabelece-se na primeira estrofe uma relação entre «nós» e os elementos da Natureza que é caracterizada por:
  • uma similitude de condições que decorre da participação da mesma realidade perene («Antes de nós nos mesmos arvoredos / Passou o vento, quando havia vento, / E as folhas não falavam / De outro modo do que hoje.» (vv. 1-4); «Não fazemos mais ruído no que existe / Do que as folhas das árvores / Ou os passos do vento» (vv. 6-8);


  • uma dissimilitude de condições que decorre da finitude e da transitoriedade que caracterizam o homem e a sua consciência do tempo («Passamos» (v. 5) e da consciência da inutilidade do esforço humano («agitamo-nos debalde» (v. 5).


A terceira estrofe contém uma exortação à fruição calma do momento, à serenidade epicurista do contacto directo com a Natureza («Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza» (vv. 9-10), e ao desejo único de identificação com ela («E não querer mais vida / Que a das árvores verdes.» (vv. 11-12), numa indiferença à perturbação causada pela ameaça inelutável do Fatum.

Nas quatro primeiras estrofes do poema, refere-se um destino comum a todos os homens, através do recurso a um sujeito plural («nós» v. 1),  «Passamos» v. 5, «agitamo-nos»  v. 5, «Não fazemos» v. 6, «Tentemos» v. 9, «nosso» v. 10, «parecemos» v. 13, «nós» v. 14, «Nos» v. 15, «nos» v. 16).
Na última quadra, evoca-se a situação particular do «eu» e refere-se a experiência directa da fugacidade da vida e da passagem inexorável do Tempo, através do recurso a um sujeito singular de primeira pessoa («o meu indício» v. 17).

Toda a última estrofe é constituída por uma interrogação retórica que remete para a consciência que o «eu» possui da fugacidade da vida e que releva o fosso existente entre a pequenez humana («Se aqui, à beira-mar, o meu indício / Na areia o mar com ondas três o apaga,»  vv. 17-18) e a vastidão e a inexorabilidade do Tempo («Que fará na alta praia / Em que o mar é o Tempo?» vv. 19-20).





 Características estilísticas

Construção frásica, à maneira clássica
O advérbio adjunto de modo
 O advérbio traduz a inutilidade do desejo humano, pois o destino é inexorável e nada escapa à sua lei.
"Passamos e agitamo-nos debalde."
O advérbio de modo traduz, no poema, a oposição entre a imagem que o Homem criou de si mesmo e a função real que ele desempenha no Todo universal, pois terá sempre que se submeter a uma Vontade que está para além dele.
"Inutilmente parecemos grandes."

Os nomes


Os nomes "ruído" e "vento" concentram a ideia dominante do poema: não é o homem que "fabrica" o seu destino; ele cumpre uma vontade outra.
"Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento."
O vocábulo "ruído" significa, no poema, a palavra humana, por oposição à palavra divina (ou ao Fado) e aponta, consequentemente, para a relatividade da palavra do Homem.
O vocábulo "vento" tem, aqui, um valor polissémico - ele associa-se ao Homem, pela ideia de efemeridade que lhe está subjacente, e remete para o sopro divino, numa significação oposta.
O nome "beira-mar" é o eco da expressão temporal que aparece no início do poema: "Antes de nós (...)", pela simbologia inerente à água - a água desintegra e extingue as formas.




O imperativo/conjuntivo com valor de imperativo


A utilização do imperativo implica a assunção de uma atitude filosófica como forma de conquistar o bem-estar (aproximação às filosofias epicurista e estóica).


"Tentemos pois com abandono assíduo"




A pontuação


A ausência de vírgulas, no interior ou no final do verso, evidencia a fluidez do pensamento, a lógica da constatação, que o ponto final enfatiza.




Sonoridades


Os sons nasais provocam um arrastamento sonoro, que corresponde ao  arrastamento da existência humana, determinado por uma vontade superior ao Homem, que se abandona àquilo que não pode dominar.


Sons nasais: antes, vento, quando, falavam, não, tentemos, com, abandono, entregar, inutilmente, mundo, sem, tempo.






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