sábado, 10 de novembro de 2012

Álvaro de Campos - A abulia e o tédio



A fase abúlica de Álvaro de Campos corresponde à produção dos poemas que se seguiram a "Casa branca nau preta", ou seja, as composições poéticas que foram escritas de 1916 até 1935, ano da morte de Fernando Pessoa.
Álvaro de Campos caracteriza-se, essencialmente, nesta última fase, pela sua faceta anti-social (à maneira romântica), pelo desprezo pelo burguês, o lepidóptero, e pela renúncia à sociedade materialista, marcada por comportamentos estereotipados, cujos valores caducos o poeta contesta, numa revolta veemente, assumindo-se como um dândi, sempre pronto a provocar, a chocar os seguidores da ordem estabelecida, causando escândalo. O poeta escreve, exprimindo a rejeição dos cânones estabelecidos.
campos recusa a acção, não se insere no sistema social que o envolve e grita a sua diferença de uma forma pungente, reivindicando para si mesmo a condição daquele que "não nasceu para isso", aquele que tem consciência de que entre o seu "eu" e os outros existe um abismo intransponível.

Como afirma em "Lisbon Revisited"



NÃO: Não quero nada.  
Já disse que não quero nada. 

(...)

Tirem-me daqui a metafísica!  
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas  
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —  
Das ciências, das artes, da civilização moderna! 

(...)

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?  
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?  
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.  
Assim, como sou, tenham paciência!  
Vão para o diabo sem mim,  
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!  
Para que havemos de ir juntos? 

(...)


Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! 

(...)

Deixem-me em paz!  Não tardo, que eu nunca tardo...  
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Aquilo que José Régio  gritava no "Cântico Negro", "Não sei para onde vou / Só sei que não vou por aí", leva-o Álvaro de Campos até às últimas consequências, agitando, pela raiz, as estruturas deformadas de uma sociedade em que a moral se tornou o absurdo, por excelência, pois não corresponde às agitações mais profundas do Homem no séc. XX, condenando-o, inexoravelmente, à hipocrisia e à ilusão da felicidade.
Este heterónimo de Fernando Pessoa é amoral, isto é, situa-se para além daquilo que é moral ou imoral, geralmente, afasta-se dos seus semelhantes (a sua aproximação em relação aos outros deve-se, segundo Pessoa, ao seu desejo de proporcionar a si mesmo diferentes sensações).
A fluência jorrante, manifestada em versos tempestuosos, exprime, muitas vezes, a dor de uma solidão assumida e desejada, um tédio imenso perante a vida, um cansaço atroz perante a existência.
As elocuções febris traduzem um cepticismo sem remédio e não excluem uma saudade viva da infância, de um tempo anterior, em que o poeta sente ter sido um espaço, para sempre perdido.

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:

(...)

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

(...)

Estala, coração de vidro pintado!

Inadaptado em relação ao universo moderno que exaltou nas odes futuristas, Campos revela a solidão originada pela consciência da diferença e da sua assunção através de uma angústia existencial que "Transbordou da vasilha" e que lhe provoca "mal-estar a fazer- (lhe) pregas na alma!" O cansaço de existir enquanto ser fragmentado, a nostalgia de uma infância "feliz e(m que) ninguém estava morto", o tédio da própria vida consubstanciam-se no poema "Là-bas, je ne sais où...":

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa?
Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação…
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível…
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!

(...)
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos …
O tédio e o niilismo aproximam os poemas da última fase da produção poética de Álvaro de Campos da poesia ortónima. Encontramos agora um Campos dominado pelo cansaço "O que há em mim é sobretudo cansaço"), pela nostalgia da infância, tempo arquetípico e mítico da felicidade perdida que se opõe ao presente e à consciência da ausência de amor, ao sentimento de abandono e à tristeza profunda.
Atentemos no  poema "Dobrada à moda do Porto":
O pessimismo da fase abúlica de Álvaro de Campos culmina no tédio e na náusea irremediável que provoca a existência do poeta, exilado da alegria sonhada da infância e agrilhoado no tempo presente, conotado com a perda e com a infelicidade.
No poema "Dactilografia", o poeta confessa:


1 comentário:

Nilson Barcelli disse...

Gosto de ler as tuas considerações acerca de Pessoa...
E aprendo muito.
Beijo, querida amiga.