Terminou hoje a
tramitação na Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Petição 259/XII/2
“Pela desvinculação de Portugal ao “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” de
1990″. A discussão seguirá agora para o plenário da Assembleia da
República. Calhou-me ser o relator a quem cabe, se quiser, transmitir no
relatório a sua opinião pessoal sobre a discussão em causa. Foi o que fiz e que
transcrevo:
O Acordo
Ortográfico de 1990 desperta paixões do lado dos defensores e do lado dos
opositores.
Também por isso
o CDS teve desde o início, e foi o único partido a fazê-lo, o cuidado de deixar
para cada um dos seus deputados a avaliação política do Acordo o que resultou
em duas intervenções em plenário na discussão sobre o terceiro protocolo
modificativo: uma a defendê-lo, outro opondo-se-lhe. A votação dos deputados da
bancada dividiu-se em consonância. Faz o relator por isso esta avaliação de
forma pessoal e em completa liberdade.
É natural que
este tema desperte ódios e paixões. De alguma maneira está em causa o que de
mais básico nos define como povo e como nação. Mais do que quase 900 anos de
pertença a um espaço físico comum é a nossa língua que nos une representando
ela, aliás, o exacto somatório desses 900 anos de cultura. É ao aprender
Português que nos tornamos parte desta comunidade. É ao escrever Português que,
estejamos aonde estivermos, mandamos notícias para casa e nos afirmamos
portugueses. Mas não só. O português foi plantado pelo mundo – para o bem e
para o mal – pelos portugueses e é hoje falado em todos os continentes. E seria
redutor dizer que ele não é, em todos os países em que é falado, diferente
entre si e que portanto que cada comunidade fala e escreve o seu português
influenciado pelas suas evoluções culturais. É aliás destas diferenças que
nasce a ideia do Acordo Ortográfico.
Não vale a pena
voltar a relembrar toda a história que levou à assinatura do acordo. De alguma
maneira, no entanto, conclui-se que a sua elaboração e finalização acontece por
uma agenda e um voluntarismo de quem defendia, naturalmente com boas intenções,
uma política de língua pró-activa e vanguardista face ao seu uso comum. Em
política às vezes vemos que são os mais persistentes – independentemente do
valor das suas posições – que levam água ao seu moinho vencendo os opositores e
sobretudo os indiferentes pelo cansaço. No caso do Acordo Ortográfico de 1990
parece que foi isso que se passou. Não havia, e continua a não haver,
propriamente uma manifestação nacional a favor duma «ortografia unificada de
língua portuguesa»[1]. Nem nacional nem
nos outros países do acordo, aliás. O Acordo diz também que «resulta de um
aprofundado debate nos países signatários»[2].
Ora esse debate, não conseguindo o relator pronunciar-se sobre os anos 80,
tem-se vivido muito nos últimos anos. E diga-se que a desfavor dos defensores
do acordo. Sobre o tempo antes do acordo vale a pena ler o que escreve o antigo
presidente da Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, o
ex-deputado Luiz Fagundes Duarte do Partido Socialista doutorado em Linguística
Portuguesa, actualmente Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura nos
Açores e à data coordenador do Partido Socialista na Comissão de Educação:
Com efeito, não
há, nem nunca houve, consenso em Portugal sobre a necessidade ou as vantagens
da aplicação da reforma ortográfica contida no Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, e o facto de o próprio Acordo Ortográfico afirmar, nos seus
considerandos preambulares, que “o texto do Acordo que ora [12 de Outubro de
1990] se aprova resulta de um aprofundado debate nos países signatários”, não
corresponde à verdade, e no que concerne Portugal não há qualquer registo de
uma tal discussão: não existem actas publicadas de encontros científicos
(colóquios, congressos ou seminários) promovidos pelo Estado, pela Academia das
Ciências de Lisboa ou por qualquer outra instituição acreditada pelo Estado –
como as Universidades ou os Centros de Linguística -, e não se conhecem
quaisquer relatórios elaborados e publicados pela Academia ou por qualquer dos
negociadores portugueses dos Acordos Ortográficos de 1986 e 1990.[3]
Se há consenso
sobre o debate feito, é sobre a falta dele.
Mas também
importa juntar à falta de debate preparativo daqueles que, no escuro negociavam
o Acordo, a falta de pareceres positivos após a elaboração do Acordo. A
Assembleia de República constituiu recentemente um grupo de trabalho sobre a
aplicação do Acordo, grupo de trabalho que encerra o seu trabalho na mesma
altura em que se escreve este relatório, que ouviu todo o tipo de
personalidades e instituições que se quiseram fazer ouvir. E é um facto
objectivo que, tirando os académicos envolvidos na elaboração do próprio
Acordo, é difícil encontrar uma opinião da academia portuguesa favorável ao
acordo – por razões variadas. Socorramo-nos novamente das palavras do antigo
colega e presidente de comissão, confirmadas pelos trabalhos desta sessão
legislativa na Comissão de Educação:
(…) o único
documento técnico que se conhece de carácter institucional e favorável ao Acordo
Ortográfico, é a “Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
(1990)” (anexo II da Resolução da Assembleia da República, de 1991, que aprova
o Acordo Ortográfico), que contém, para além de deficiências técnicas, lacunas
graves, pois menciona estudos preliminares que ninguém conhece e não estão
disponíveis. Nela, os autores do Acordo Ortográfico defendem, entre outras
coisas improvadas, o baixo impacto das mudanças ortográficas propostas através
de valores percentuais calculados a partir de uma lista de 110.000 palavras (de
estrutura e composição desconhecidas) pertencentes ao “vocabulário geral da
língua” (que não definem nem explicam), ignorando (a) as frequências
das palavras afectadas em situações discursivas concretas e (b) a
possibilidade de todas as palavras afectadas formarem combinatórias (lexias
complexas) com outras, em termos complexos, designações complexas,
fraseologias, locuções e colocações.
O segundo (…) é
da autoria do Professor Malaca Casteleiro, autor do texto do Acordo sobre o
qual emitiu o parecer favorável.[4]
O mesmo parece
ser confirmado pelos anexos ao relatório à petição 495/X/3ª, da autoria do
deputado Feliciano Barreiras Duarte, onde se pode ler ainda:
O processo que
no ano de 2008 conduziu à aprovação do Segundo Protocolo Modificativo em três
dos órgãos de soberania portuguesa (Governo, Assembleia da República e
Presidente da República), salvo outras opiniões, no tempo e no espaço, foi
excessivamente acelerado para o interesse público que deve ser tido em conta neste
tipo de matérias de tamanha relevância nacional. O rito processual político e
de “iure” adoptado, quase um ano depois, afigura-se ter sido excessivamente
acelerado, porquanto não proporcionou um melhor debate e compreensão da matéria
em discussão e votação e pouco impacto teve até ao momento na implementação do
acordo ortográfico em Portugal. Antes pelo contrário. A pressa parece ter sido
mais uma vez inimiga do bom senso. É que após a sua aprovação
jurídico-constitucional pouco nada se avançou na sua aplicação e
operacionalização em Portugal. Com a agravante de as contradições por
parte do Ministério (sobretudo) da Cultura serem cada vez maiores.[5]
Neste sentido
também, importa recordar o perturbante depoimento do vice-presidente da
Academia de Ciência no dito grupo de trabalho. O doutor Anselmo Soares afirmou ipsis
verbis que o responsável pela área da Cultura no governo de José Sócrates «ameaçou
inclusive o presidente da Academia de Ciências de Lisboa de extinguir a
Academia (…) pelo facto de ela não estar ao lado do governo nesta matéria»[6]. A Academia, pela voz do seu
vice-presidente, não repudia o Acordo (seria estranho, depois de o ter
co-escrito) mas rejeita a sua imposição nos moldes em que foi feita e não se
coíbe de apontar erros vários dizendo mesmo ser «uma vergonha» o que se está a
passar com a língua portuguesa. Termina o representante da Academia de Ciências
deixando uma pergunta importante: qual é o vocabulário que se deve “escolher”
para dar cumprimento ao Acordo? «Há três. Há o da Porto Editora, há o do
ILTEC e há o da Academia das Ciências»[7]
A questão
levantada não é de importância menor. De facto o governo e a Assembleia da
República deram seguimento à implementação do Acordo Ortográfico sem que
houvesse um vocabulário comum oficial – instrumento essencial cuja falta se
soma às já identificadas em todos este processo (falta de debate e de mínimo
consenso académico).
Posto isto vale
voltar mentalmente ao início: é possível haver uma ortografia unificada entre
os vários portugueses? Faz esse desiderato sentido quando léxico, gramática e
semântica são objectivamente diferentes nos vários países do Acordo? Faz ainda
sentido considerar como critério para a ortografia a ser o critério da
«pronúncia culta»[8] da língua? Como
portuense e provavelmente afastado do que a academia lisboeta considera
pronúncia culta o relator pode dificilmente entender esse critério – ainda que
note com graça que o acento agudo em certas formas do pretérito perfeito do
indicativo passe pelo acordo a facultativo[9].
Como se pronuncia no Norte, mas como nunca lhe passaria pela cabeça escrever.
Deixando de
lado ficções do “acordês”, o que é real é que as diferenças nomeadamente entre
o Português de Portugal e o do Brasil são tantas que um texto inglês continua a
ter de ter duas traduções escritas diferentes consoante for editado no Brasil
ou em Portugal. E ainda que haja, graças à televisão e à Internet, mais trocas
culturais entre os dois países do que ainda há 30 anos atrás, nada faz crer que
essas diferenças venham a diminuir.
Pouco há a
assinalar contra reformas ortográficas que assinalem as normais e duradouras
mudanças que as línguas sofrem ao longo dos anos. Não é o caso desta. Como os
países de língua portuguesa evoluem o “seu” Português de forma independente,
uma reforma ortográfica clara e simplificadora provavelmente criaria mais
diferenças do que identidades entre as várias formas de Português. Não viria
mal ao mundo por isso e seria mais útil para cada um dos povos que escreve
Português do que criar uma “ortografia unificada de língua portuguesa” de
utilidade duvidosa. Aliás, de alguma maneira essa ortografia unificada
contraria a própria história. As várias formas do Português já foram em tempo
unas – deixaram de o ser com sucessivos processos em Portugal e no Brasil e
poderíamos reconhecer e aceitar essa evolução.
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