Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Livro Sexto'
Este poema assenta toda a sua estrutura na repetição, no eco, através da acumulação de fórmulas semelhantes, quer por anástrofe, quer por repetição:
Para atravessar contigo o deserto do mundo
enfrentarmos juntos o terror da morte
ver a verdade
perder o medo
meu reino
segredo
silêncio
espelho
minha rápida morte
pérola redonda e seu oriente
vida
imagem
sem véu do dia duro
os espelhos
O sujeito lírico, entrega-se totalmente nas mãos de um “Tu”, aparentemente superior, reconhecendo a sua nudez humana (“Sem os espelhos vi que estava nua / E ao descampado se chamava tempo”).
Declara na 1.ª estrofe o grande e único objectivo da sua vida: superar a condição dura (“atravessar (…) o deserto do mundo”), temporal, terrífica (“terror da morte”) da vida e do mundo; vencer os obstáculos do medo (“perder o medo”) e encontrar a verdade (“ver a verdade”), contando com a ajuda de um “Tu” para a realização deste objectivo (“Ao lado dos teus passos caminhei”).
Para isto, tal como mostra a 2.ª estrofe, o sujeito poético deixa/larga tudo o que possuía – tesouros (“meu reino”, “minha pérola”), o seu “segredo”, as suas ilusões (“meu espelho”, “minha imagem”, ou seja, a vida – aquilo que constitui o seu paraíso (“abandonei os jardins do paraíso”).
Por mais diversas que sejam as palavras à volta de “meu” ou “minha”, elas mostram um único sentido da vida, o efémero, o temporal, o contingente, o artificial.
Parece estranho o "eu" abandonar tudo o que é seu, o que o torna individual: este despir-se de si mesmo. A finalidade deste acto, no entanto, já nos foi dita na 1.ª estrofe – a procura da intemporalidade, da essência, do eterno, e da verdade.
Em síntese, as duas primeiras estrofes dizem:
Ao lado de teus passos caminhei
Por ti deixei
E abandonei os jardins do paraíso
Três acções passadas, situadas num tempo intermitente e passageiro e que se encadeiam umas nas outras.
Um tempo de lamentação, como é sugerido pela repetição do ditongo “ei”, resultante do encontro com a nostalgia provocada por uma não solidão aparente (“ao lado dos teus passos”) que se vem a verificar realmente solidão, resultante do abandono da sua individualidade.
A situação abstracta (o despir-se de si mesma) sobrepõe-se à concreta (a companhia física do “Tu”).
A solidão impõe-se e o Eu enfrenta-se, o advérbio “cá”, que inicia a 3.ª estrofe, cria dois espaços do poema. “Cá” é o início dum tempo, um outro em que o Eu – despido do que é finito – se enfrenta a si mesmo, à sua essência, deixando de ser cego mas sim estando “à luz” e “sem véu do dia duro / sem os espelhos” vê-se liberto – “vi que estava nua” – este é o encontro por excelência, o encontro consigo.
A última estrofe conclui o processo iniciado valorizando, através da antítese metafórica da nudez e do acto de se vestir (“estava nua” versus “me vestiste”), a aprendizagem espiritual da autêntica liberdade e da resistência à adversidade: “E aprendi a viver em pleno vento”.
O sujeito poético subtrai-se da exigência das leis rígidas do espaço e do tempo em que se encontrava enclausurado, como que numa redoma (“nos jardins do paraíso”), passando a estar no “descampado [que] se chamava tempo”, nesta mudança está implícita a total liberdade.
A mudança do tempo verbal capta a nossa atenção e, de uma situação temporal determinada pelo pretérito perfeito, passa-se a uma situação de atemporalidade (mostrada pelo pretérito imperfeito).
O dístico final do poema presentifica a consubstanciação do “Eu” com o “Tu” (“com teus gestos me vestiste”) realizada depois do algo atingido (“por isso”); da total libertação, em comunhão perfeita com o “Tu, o eu aprende “a viver em pleno vento”.
É aqui que se finda a passagem de uma vida virtual, criada pelos espelhos, para uma vida real. Esta essência tem a sua leveza sugerida pela aliteração do /v/ presentes depois da partícula “Cá”, isto é, após a libertação, após a transformação.
Concluindo, o poema transmite a ideia de que nunca devemos viver na ilusão apesar de aparentemente isso nos parecer mais cómodo, uma vez que nessa “realidade” estamos presos num mundo virtual. Devemos sempre ver o Mundo de uma forma clara, ou seja, sermos verdadeiramente livres. As pessoas que nos amam realmente são aquelas que nos ajudam a sair do mundo de “mentira”, e não aquelas que nos ajudam a construir as ilusões.
Tiago Branco, 10.º ano