"Sonho que sou": eis as primeiras palavras que lemos. Chama-nos a atenção de imediato o verbo "sonhar". O texto parte de uma realidade onírica, ideal. Não é verdade que o sonho é uma "constante da vida", "Que sempre que o homem sonha/O mundo pula e avança"? Não é verdade que muitas vezes nos entregamos ao sonho? O sujeito poético (= eu [sonho]) sonha. O quê? "Sonho que sou um cavaleiro andante". A sua convicção é reforçada pela repetição da consoante [ s ]: se souberes a classificação das consoantes, dirás que a repetição do fonema sibilante [ s ] confere força à afirmação, ele aparece em duas sílabas tónicas seguidas. Basta alterares o verso para "Sonho-me um cavaleiro andante" ou "Julgo que sou um cavaleiro andante" para veres a diferença de força. O que é um cavaleiro andante? Em que época havia cavaleiros andantes? Hoje não há, hoje há automóveis, aviões... Na Idade Média eram frequentes as aventuras desses cavaleiros. É, pois, a aventura, sinónimo de sonho, que devemos fixar. A caracterização do cavaleiro como andante remete exatamente para um espaço a percorrer, num determinado momento temporal. Que espaço?
"Por desertos, por sóis, por noite escura". Chama-nos a atenção a repetição da consoante [p] ou do fonema bilabial momentâneo [p], que, pela implosão do ar e ruído que provoca, sugere de imediato o som do trotar do cavalo: p p p. Se o texto fosse simbolista, poderíamos mesmo tirar partido da configuração desta consoante para a sugestão da configuração física da pata do cavalo. Mas não é. O espaço e a dimensão temporal são, pois, constituídos por três realidades: desertos, sóis, noite escura. Cavalgar por desertos, é difícil, não é verdade? A aventura não será fácil, o objetivo a alcançar não será fácil. Cavalgar por desertos e ainda por sóis é ou não mais difícil? O sol escaldante do deserto! A vida não é também uma aventura "escaldante"? Já imaginaste o que seria uma vida sem provas? Vais ler mais tarde poemas de Fernando Pessoa, sobretudo de Mensagem, onde encontrará uma definição ideal de vida. Cavalgar por noite escura não será sinónimo de impossibilidade? A noite já é em si escura. Por que razão o poeta quis qualificá-Ia de escura? É que há noites com tanto luar que permitem ver. O que parece evidente é a gradação crescente de dificuldades que o cavaleiro terá de vencer. Que força o impele? "Paladino do amor": é o amor a um objetivo, a uma meta. Não é verdade que o amor é por vezes mais forte do que a morte, como diz o provérbio? Alguém escreveu: "Ama e faz o que quiseres". Quando o amor é mesmo amor, tudo se pode vencer. Guiado pela força do amor, o cavaleiro procura "anelante/O palácio encantado da Ventura". Eis a meta, o objetivo: a Ventura, metaforicamente rainha de um palácio encantado. Que a procura é intensa, mostra-o não só o adjetivo com a função de advérbio, mas o transporte do verso terceiro sobre o verso quarto. Cavaleiro andante, palácio encantado, tudo a lembrar a época medieval, os contos de fadas, a procura do Graal, etc.
Pergunta-se muitas vezes para que serve a rima. Repara: andante rima comanelante
e escura com Ventura. Será rima só de ouvido? Se fosse o caso, não teria muito interesse. A poetização faz-se quer a nível do significante quer a nível do significado. A nível do significante, podemos determo-nos nos exemplos apontados. Andante eanelante são adjetivos que se aproximam pelo som e pelo significado; a rima funciona por semelhança. Escura e Ventura são palavras de categoria gramatica l diferente e de significado diferente. Por que razão terá o poeta escolhido esta rima rica? Parece não ser difícil distinguir que se fez a aproximação destas palavras para sugerir dificuldade. Não é difícil cavalgar sem nenhuma luz? A Ventura, a felicidade, não qualquer felicidade, porque as palavras maiusculadas adquirem significados que transcendem a denotação, a felicidade profunda, vital, essencial, felicidade a que leva um autêntico amor, não é difícil de alcançar? Eis o sentido da rima, eis a poetização do significante.
Tudo quanto dissemos aponta para elevado grau de dificuldade. Não admira que o cavaleiro vacile na primeira prova a que é submetido: "Mas já desmaio, exausto e vacilante/Quebrada a espada já, rota a armadura..." A exaustão leva à vacilação, o advérbio de tempo "já" indica o momento do desmaio. Terá sido grande a luta? O cavaleiro tinha consigo as suas armas, com as quais julgava poder conseguir os seus intentos. Todavia, elas foram destruídas durante a luta. E aconteceu o desmaio, a queda, mas não a desistência. Quantas vezes não caímos? Quantas vezes não nos levantamos? Não é a vida feita de sucessos e de insucessos? A pontuação reticente pode sugerir o que acabamos de dizer ou ainda um momento de recuperação de forças: mesmo desmaiado, tem dentro de si a força que o faz agir: o amor. É por isso que, de forma quase inesperada, o cavaleiro avista aquele palácio que procurava. Então, como um náufrago que avista uma boia, ganha forças. Ganha forças porque o avistou e ganha forças porque ele era realmente belo, talvez mesmo muito mais belo do que pensara. Compreendes por que é destacada a "sua pompa e aérea formosura"? Antes era um "palácio encantado", agora mais perto é ainda mais sedutor. Não haverá a intenção de salientar a qualidade da Ventura, do Sonho?
A passagem de estrofe é estratégica: sugere o tempo necessário para o cavaleiro chegar ao palácio. O poema é uma unidade, tem de haver continuidade, não podem acontecer saltos. Uma vez encontrado o palácio, o que faz o cavaleiro? Duas ações. Repara na poetização do significante: "Com grandes golpes bato à porta e brado"; construído o verso com monossílabos e dissílabos, a acentuação tem de sugerir os golpes: ~´~´~´~´~´/; repara que nas sílabas sexta e décima recaem os acentos dominantes (verso decassílabo heroico) e as palavras que os contêm são as que indicam as duas ações; repara na repetição (aliteração) dos fonemas sublinhados a negro e na repetição da vogal aberta /a/, a sugerir admiração e expectativa. Tudo se conjuga para criar um efeito quase onomatopaico do que acontece. O cavaleiro bate à porta e simultaneamente (simultaneidade indicada pela conjunção coordenativa e) grita. Este verso é um exemplo acabado do trabalho sobre o significante.
A apresentação do cavaleiro é também notável: "Eu sou o Vagabundo, o Deserdado..." Novamente as maiúsculas a conferir significados transcendentes às palavras. Que significará Vagabundo? Não o sentido a que nos habituámos a colar a essa palavra. Os alunos já viram o uso do adjetivo "vago" em Bocage e em Garrett com o significado de andante, que vagueia. É esse o significado neste contexto, aumentado da transcendência que lhe advém de estar maiusculado: será então aquele que procura algo de essencial, de vital. E Deserdado? Aquele que tem de conquistar a Ventura, porque a felicidade não é um rebuçado que cai do céu: tem de ser merecida. Belo tema para os nossos jovens ganharem o ideal de saber viver, tendo presentes as palavras de Fernando Pessoa: "Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor."Qual o grito do cavaleiro? "Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!" Da luta, do sacrifício, já falámos; também não admira que as portas sejam de ouro, pois o palácio é encantado e fulgurante; a metaforização de todo o palácio é um dado necessário para evidenciar a grandeza da procura. A pontuação deixa transparecer a aflição e a expectativa do cavale iro, prestes a atingir o seu objetivo. A mudança de estrofe é também estratégica, como já o vimos anteriormente.
As portas obedecem a tão ansioso pedido; o ruído que fazem é sugerido pela repetição do fonema vibrante [r] e denuncia que poucas vezes se abrem essas portas. O cavaleiro pode ou não vencer esta terceira prova? Encontrará ou não a Ventura? Tudo parece indicar que sim. Mas, oh! crueldade!, não vai vencer. A adversativa "Mas" indicia uma deceção, consumada com o vazio do palácio: "Mas dentro encontro só, cheio de dor,/Silêncio e escuridão - e nada mais." Repara que a "noite escura" já indiciava impossibilidade; repara no paralelismo "Mas já"- disjuntivo temporal - e "Mas dentro" - disjuntivo espacial; repara no paralelismo "já desmaio" e "encontro só". Não te parece que havia vários indícios de fracasso ao longo do poema? Se eram abundantes esses sinais, não se esperava uma tão completa deceção. Um poema é um percurso - a vida é um percurso -, inicia-se e, por vezes, não se sabe onde vai chegar. Não é esta uma das atrações da poesia? Um jogo de resultados imprevisíveis? Se tudo fosse conhecido de antemão, onde a magia, o encanto da descoberta? O cavaleiro entrou no palácio encantado, parecia ter alcançado o que procurava. Mas apenas encontrou "Silêncio e escuridão - e nada mais!" Repara como a tonalidade das palavras se fechou: os sons nasais, palavras de sentido negativo, o pronome indefinido negativo reforçado pelo advérbio de quantidade. Deceção completa! O cavale iro terá de recomeçar tudo de novo. Quem não vê neste poema a história de tantas tentativas fracassadas? Quem não vê neste poema a distância que vai do sonho à realidade? Quem não vê neste poema o próprio Antero, utópico, revolucionário, cheio de força, erguendo a espada da Liberdade, do Amor e da Justiça, mas incompreendido, recusado? Quem não vê neste poema a alegoria de tantos jovens sonhadores e incompreendidos? Terá sido então inútil esta procura? Nada é inútil quando os objetivos por que se luta são autênticos. Nunca se deve desistir. Quem sabe se da próxima vez este cavaleiro não encontrará a sua Ventura! O que terá falhado? Perguntas que motivam outros textos que poderiam ser escritos.
Fizemos também uma caminhada de aná lise textual. Estamos convencidos de que um trabalho destes não deixará de ser estimulante, pois é um jogo.
J. Guerra e J. Vieira, Aula Viva. Português A. 12º Ano, Porto Editora, 1999
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