quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Ulisses - Mensagem - Fernando Pessoa



O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo --

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.


Este, que aqui aportou,

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.


Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade,

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.



Este poema pertence à primeira parte da "Mensagem", em que se aborda a problemática da origem, do princípio ou da fundação de Portugal. Na origem estaria Ulisses, o navegador errante, que, segundo a lenda, teria sido o fundador de Lisboa. A origem estaria no mito. Mas o que é o mito? E porque situar a origem no mito?

"Efabulações mais ou menos complexas, de feição popular, que constituem um verdadeiro tesouro de sabedoria, transitam de geração em geração, sob forma simbólica. Apontam para os caminhos que conduzem a Deus, indicam estádios de iniciação e encerram verdades profundas, inefáveis, os mais profundos e misteriosos tesouros da verdade espiritual, pérolas de beleza tão rara e tão etérea que não suportam ser submetidas ao exame da análise intelectual; são dados à Humanidade pelos grandes Instrutores para a protegerem e encaminharem no seu desenvolvimento espiritual".

Para Fernando Pessoa, Portugal encontrará na sua própria alma "a tradição dos romances de cavalaria, onde passa, próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo (...), a Demanda do Santo Graal. Todas essas coisas, necessariamente dadas em mistério, representam a verdade íntima da alma, a conversação com os símbolos."

"É à luz desta concepção de mito que se pode compreender o oxímoro "O mito é o nada que é tudo": nada, porque, oculto, nada significa; tudo, porque, desvendado, revela a Verdade.

A antítese repete-se em expressões diferentes, de conteúdo semelhante: "sol (...) brilhante e mudo"; "O corpo morto de Deus / vivo e desnudo".

"E Ulisses é, como o sol, um mito brilhante e mudo - um mito da criação. Transformou-se em lenda, empalideceu, deixou de significar, mas "escorre", "fecunda" e "decorre" ocultamente. Em baixo, Portugal, a vida, perdida a transparência do mito, esquecida a verdade que ele transporta, degrada-se, "morre".

A origem da nacionalidade está no Além, ao seu domínio pertencem os gestos arquetípicos dos antepassados que criaram a pátria. Todos os heróis, enquanto vivos, cumprem uma missão de procura e revelação de uma realidade que os transcende. Os actores perdem-se na poeira do tempo, a lenda deturpa-os, a tradição (re)conhece-os, o mesmo povo que os adultera identifica-se com eles.


O desenvolvimento do poema faz-se em três momentos:

  • A primeira estrofe em que se apresenta uma definição de mito. Logo no primeiro verso deparamos com uma das características frases lapidares da "Mensagem", para, nos restantes quatro, ser concretizada a sua generalidade e justificado o seu carácter antitético. O mito é um sol brilhante que "abre", isto é, revela os céus, mas é mudo. É "o corpo morto de Deus" tornado vivo e revelado. O mito é luz que abre caminho para o Todo, mas é ao homem que compete a caminhada.
  • A segunda estrofe refere-se propriamente a Ulisses ("Este que aqui aportou") e tem, portanto uma feição particularizante. O poeta enquadra a lenda da fundação de Lisboa pelo herói grego dentro dos parâmetros definidos no primeiro verso. A lenda da sua passagem pela costa portuguesa foi/é suficiente para justificar o nome da cidade e, mais do que isso, emprestar solidez e dignidade à sua origem: "Este, que aqui aportou, (...) Sem existir nos bastou. (...) E nos criou".
  • A terceira estrofe é uma conclusão. Iniciada pela palavra "assim", define as relações da lenda/mito com a realidade. A lenda é o fermento da realidade, o seu elemento fecundante: "A lenda se escorre / A entrar na realidade, / E a fecundá-la decorre". A lenda é a origem, vem de cima, do alto dos tempos, e, sem ela, "em baixo", a vida, que é "metade de nada, morre".
Necessário se torna, aqui, atentar na dicotomia ideal - lenda (mito) / real (vida) - de sabor platónico e tão explorada por Fernando Pessoa. De grande expressividade são, entre outros recursos estilísticos, o uso do oxímoro, logo no primeiro verso e ao longo de todo o poema, a exploração do paradoxo ("metade de nada"), a metáfora ("o sol que abre os céus"; "a lenda se escorre") e a personificação ("E a fecundá-la decorre"; "Em baixo, a vida (...) morre").
Significativa é também a alternância dos tempos verbais:
  1. na primeira estrofe predomina o presente, porque estamos perante uma definição do mito, algo permanente;
  2. na segunda estrofe destaca-se o pretérito, porque se evoca a origem, o acto mítico da fundação;
  3. e na terceira há uma recuperação do relevo do presente, porque se conclui que a lenda é essencial à realidade, é o cerne da continuidade.
Resumindo:
Trata-se de um herói fundador, de base mítica. Daí que o poema, em três quintilhas, com versos rimados, oscilando entre as 7 e as 4 sílabas, se inicie com a asserção: "O mito é o nada que é tudo". Trata-se de uma das muitas afirmações da ordem do oxímoro ou paradoxo, presentes sobretudo na segunda estrofe. O mito, diz Pessoa, não existe - é o nada - , mas tem a força de ser tudo, porque é fecundante (terceira estrofe).
A primeira estrofe é uma espécie de definição, seguindo o esquema normal de qualquer definição:

(Sujeito) -> (Predicado: verbo ser) -> verbo predicativo)
O mito -> é -> o nada que é tudo

Como tentativa de definição, as formas verbais encontram-se no presente do indicativo. O mito, o nada, uma vez revelado, passa a ser tudo (tal como o sol, "mito brilhante e mudo" que, revelado, "passa a corpo morto de Deus / Vivo ou desnudo").
A segunda estrofe inicia-se por um deíctico - Este - que se refere a Ulisses, presente no título; ao iniciar-se por um deíctico, a estrofe passa a ser uma tentativa de concretização da definição da primeira estrofe. Ulisses, figura do passado (verbos no pretérito - aportou - foi - nos bastou - foi vindo - criou), não existiu, de facto - mas bastou-nos como lenda ("Sem existir nos bastou - e nos criou".), lenda portadora de força vivificante.
Na terceira e última estrofe, a passagem do nada ao tudo: a lenda vem (escorre) de cima; ao entrar na realidade, fecunda-a - fazendo o "milagre" de tornar irrelevante a vida cá de baixo, dita do mundo real, objectivo: "Em baixo, a vida, metade / De nada, morre". Só readquire vida aquilo que o mito / nada tudo fecunda - e o processo não é do passado, mas intemporal - de onde os tempos verbais de presente.
É irrelevante, parece dizer Pessoa desde este poema, que as figuras de que vai ocupar-se, os heróis fundadores, tenham tido ou não existência histórica - o que importa é que todos eles tenham funcionado com a força do mito, que, não existindo, é tudo. Por isso, todos os heróis que se seguem são heróis mitificados, ainda que com existência histórica, feita de sucessos ou fracassos, não importa. Um deles é sem dúvida, "D. Dinis".

1 comentário:

☼ Carolina ☼ disse...

…....... /)
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……..|░░░|☆ Feliz _(♥)_
…..@|░░░|¸.¤“˜¨Navidad.
.¨˜“¤|░░ഐ¤ª@“˜¨¨y
…¨˜“გª¤.¸::¸.¤ª☆“˜¨¨Año Nuevo.
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