Capítulo IV
Repreensão dos vícios em geral
· "(...) é que vos comedes uns aos outros."
· "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos."
· "Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Para comprovar a tese de que os homens se comem uns aos outros, o orador usa uma lógica implacável, apelando para os conhecimentos dos ouvintes e dando exemplos concretos. Os seus ouvintes sabiam a verdade do que ele afirmava, pois conheciam que os peixes se comem uns aos outros, os maiores comem os mais pequenos. Além disso, cita frequentemente a Sagrada Escritura, em que se apoia. Lendo hoje este capítulo, assim como todo o Sermão, não se pode ficar indiferente à lógica da argumentação.
As conclusões são implacáveis, pois são fruto claríssimo dos argumentos usados.
O ritmo é variado: lento, rápido e muito rápido. Quando as frases são longas, o ritmo é repousado; quando as frases são curtas, quando se usam sucessivas anáforas nessas frases, o ritmo torna-se vivo, como acontece no exemplo do defunto e do réu. O discurso deste sermão, como doutros, é semelhante ao ondular das águas do mar: revoltas e vivas, espraiam-se depois pela areia como que espreguiçando-se. Uma das características maravilhosas do discurso de Vieira é a mudança de ritmo, que prende facilmente os ouvintes.
A repetição da forma verbal "vedes", que deverá ser acompanhada de um gesto expressivo, serve para criar na mente dos ouvintes (e dos leitores) um forte visualismo do espectáculo descrito.
O uso dos deícticos demonstrativos tem por objectivo localizar os actos referidos, levando os ouvintes a revê-los nos espaços onde acontecem. A substantivação do infinitivo verbal está também ao serviço do visualismo. O verbo deixa de indicar acção limitada para se transformar numa situação alargada.
Há uma passagem semelhante no momento em que o orador refere a necessidade de o bem comum prevalecer sobre o apetite particular: "Não vedes que contra vós se emalham…".
O orador expõe a repreensão e depois comprova-a como fez com a primeira repreensão: dá o exemplo dos peixes que caem tão facilmente no engodo da isca, passa em seguida para o exemplo dos homens que enganam facilmente os indígenas e para a facilidade com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração dos negros é cerrada e implacável. Conclui, respondendo à interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito cegos e ignorantes e apresenta, em contraste, o exemplo de Santo António, que nunca se deixou enganar pela vaidade do mundo, fazendo-se pobre e simples, e assim pescou muitos para salvação.
Capítulo V
Repreensão dos vícios em particular
Os Roncadores
Defeitos – embora tão pequenos roncam muito, simbolizam a soberba, o orgulho, a arrogância (É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar).
Argumentos - pequenos mas muita língua; facilmente pescados; os peixes grandes têm pouca língua; muita arrogância, pouca firmeza
Exemplos de homens – Pedro; Golias; Caifás; Pilatos
Os Pegadores
Defeitos – parasitismo (sendo pequenos, pregam-se nos maiores, não os largando mais)
Argumentos - vivem na dependência dos grandes, morrem com eles; os grandes morrem porque comeram, os pequenos morrem sem terem comido
Exemplos de homens - Toda a família da corte de Herodes; Adão e Eva
Os Voadores
Defeitos – presunção, ambição, vaidade (sendo peixes, também se metem a ser aves)
Argumentos - foram criados peixes e não aves; são pescados como peixes e caçados como aves
Exemplos de homens - Simão mago
O Polvo
Defeitos – traição (com aparência de santo, é o maior traidor do mar)
Argumentos - ataca sempre de emboscada porque se disfarça
Exemplos de homens – Judas
Comparação entre os peixes e Santo António
Os Roncadores: soberbos e orgulhosos, facilmente pescados
Santo António: tendo tanto saber e tanto poder, não se orgulhou disso, antes se calou. Não foi abatido, mas a sua voz ficou para sempre
Os Pegadores: parasitas, aduladores, pescados com os grandes
Santo António: tinha duas asas: a sabedoria natural e a sabedoria sobrenatural. Não as usou por ambição; foi considerado leigo e sem ciência, mas tornou-se sábio para sempre
O Polvo: traidor
Santo António: Foi o maior exemplo da candura, da sinceridade e verdade, onde nunca houve mentira
Episódio do Polvo
Divisão em partes:
- Introdução: a aparência do polvo "O polvo… mansidão" (ll.177-179).
- Desenvolvimento: a realidade "E debaixo… pedra" (ll.179-187).
- Conclusão: a consequência "E daqui… fá-lo prisioneiro" (ll.187-189).
- Comparação: "Fizera… traidor" (ll.190-196).
A expressão "aparência tão modesta" traduz a aparente simplicidade e inocência do polvo, que encobre uma terrível realidade. O orador usa a ironia. A expressão "hipocrisia tão santa" contém em si um paradoxo: a hipocrisia nunca é santa; de novo, o orador usa uma fina e penetrante ironia: o polvo apresenta um ar de santo, mas encobre uma cruel realidade. Tem a máscara (que é o que quer dizer em grego hipócrita), o fingimento de inofensivo.
O mimetismo é o que o polvo usa para enganar: faz-se da cor do local ou dos objectos onde se instala.
No camaleão, o mimetismo é um artifício de defesa contra os agressores, no polvo é um artifício para atacar os peixes desacautelados.
O orador refere a lenda de Proteu para contrapor o mito à realidade: Proteu metamorfoseava-se para se defender de quem o perseguia; o polvo, ao contrário, usa essa qualidade para atacar.
Os deícticos demonstrativos implicam a linguagem gestual e têm por intenção criar o visualismo na mente dos ouvintes (leitores). A anáfora, repetição da mesma palavra em início de frase, insiste no mesmo visualismo.
Os verbos que se referem ao polvo estão no presente do indicativo, traduzindo uma realidade permanente e imutável; a forma "vai passando" gerúndio perifrástico, acentua a forma despreocupada dos outros peixes que lentamente passam pelo local onde se encontra o traidor; os verbos que se referem a Judas estão no pretérito perfeito do indicativo porque referem acções do passado. Há ainda o imperativo "Vê", que traduz uma interpelação directa ao polvo, tornando o discurso mais vivo.
O polvo nunca ataca frontalmente, mas sempre à traição: primeiro, cria um engano, que consiste em fazer-se das cores onde se encontra; depois, ataca os inocentes.
O texto deste capítulo segue a variedade de ritmos dos outros capítulos e apresenta os mesmos recursos para conseguir tal objectivo. Basta atentar no parágrafo que começa por "Rodeia a nau o tubarão… " e no texto referente ao polvo.
Elemento comum entre Judas e o polvo: a traição. Ambos foram vítimas deste defeito.
Elementos diferentes entre Judas e o polvo: Judas apenas abraçou Cristo, outros o prenderam; o polvo abraça e prende. Judas atraiçoou Cristo à luz das lanternas; o polvo escurece-se, roubando a luz para que os outros peixes não vejam as suas cores. A traição de Judas é de grau inferior à do polvo.
Capítulo VI (Peroração)
Peroração: conclusão com a utilização de um desfecho forte, capaz de impressionar o auditório e levá-lo a pôr em prática os ensinamentos do pregador.
Animais/Peixes - foram escolhidos para os sacrifícios; estes podiam ir vivos para os sacrifícios; ofereçam a Deus o ser sacrificado ofereçam a Deus o sangue e a vida
Peixes - não foram escolhidos para os sacrifícios; só poderiam ir mortos. Deus não quer que Lhe ofereçam coisa morta; ofereçam a Deus não ser sacrificados; ofereçam a Deus o respeito e a obediência
Homens - os homens também chegam mortos ao altar porque vão em pecado mortal. Assim, Deus não os quer.
O orador quer que os homens imitem os peixes, isto é, guardem respeito e obediência a Deus. Numa palavra, pretende que os homens se convertam (metanóia).
Orador - tem inveja dos peixes; ofende a Deus com palavras;
tem memória; ofende a Deus com o pensamento; ofende a Deus com a vontade;
não atinge o fim para que Deus o criou; ofende a Deus
Peixes - têm mais vantagens do que o pregador; a sua bruteza é melhor do que a razão do orador; não ofendem a Deus com a memória; o seu instinto é melhor que o livre arbítrio do orador, não falam, não ofendem a Deus com o pensamento, não ofendem a Deus com a vontade, atingem sempre o fim para que Deus os criou; não ofendem a Deus
As interrogações têm por objectivo atingirem preferencialmente a inteligência, enquanto as exclamações visam mais o sentimento dos ouvintes. As repetições põem em realce o paralelismo entre o orador e os peixes; as gradações intensificam um sentido.
A repetição do som /ai/ (11 vezes) cria uma atmosfera sonora cada vez mais intensa e optimista; a repetição das palavras "Louvai" e "Deus" apontam para a finalidade global do sermão: o louvor de Deus, que todos devem prestar. O verbo no imperativo realiza a função apelativa da linguagem: depois de ter inventariado os louvores e os defeitos dos peixes/homens, não poderia deixar de apelar aos ouvintes para que louvem a Deus. A escolha do hino Benedicite cumpre fielmente esse objectivo, encerrando o Sermão com um tom festivo, adequado à comemoração de Santo António, cuja festa se celebrava. A palavra Ámen significa "Assim seja", "que todos louvem a Deus". O quiasmo realizado na colocação em ordem inversa das palavras glória e graça sugere a transposição dos peixes para os homens: já que os peixes não são capazes de nenhuma dessas virtudes, sejam-no os homens. Sugere também uma mudança: a conversão (metanóia), porque só em graça os homens podem dar glória a Deus.
"Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico."
Síntese
Capítulo I (exórdio)
Vós sois o sal da terra
Santo António modelo de pregador
Capítulo II (exposição e confirmação)
Apresentação do plano do Sermão:
· Louvor das virtudes dos peixes
Em geral: obediência; atenção à palavra de Deus; devoção e respeito; retiro
Capítulo III (exposição e confirmação)
Em particular: peixe Tobias (poder curativo das suas entranhas); rémora (pequeno no corpo, mas grande na força); quatro olhos (capacidade de olhar para o céu e para o inferno ao mesmo tempo)
Capítulo II e III - analogia entre: virtudes dos peixes / virtudes da pregação de Santo António
Capítulo IV (exposição e confirmação)
· Repreensão dos vícios dos peixes
Em geral: comem-se uns aos outros; os grandes comem os pequenos; cegueira e vaidade
Capítulo V (exposição e confirmação)
Em particular: roncador (soberba); pegador (parasitismo); voador (ambição; polvo (traição)
Capítulo IV e V - antítese entre: vícios dos peixes / virtudes da pregação de Santo António
Capítulo VI (peroração)
Julgamento final dos peixes
Louvores a Deus
1 frango
1 cebola
2 dentes de alhos
50 ml de azeite
2 dl de vinho branco
2 colheres de sopa de concentrado de tomate
2 colheres de sopa de farinha
2 colheres de sopa de caril em pó
sal e pimenta
uma malagueta grande
1 folha de louro
Bom apetite!
Trabalhinho:
1 comentário:
Olá Mena
Gostei imenso de ler a tua "aula" sobre o Sermão de santo António aos Peixes.
Uma obra que sempre gostei e sigo com interesse a tua análise.
Já é tarde, não jantei, mas senti o cheirinho a caril.
Bjs.
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