sábado, 17 de dezembro de 2011

A um Deus claro ou incerto



Há ideias que crescem em nós, como preces,
destinadas a um Deus claro ou incerto.
Enquanto, mecânicos, damos voltas ao rosário,
chegamos a acreditar, por definição,
que Ele nos ensina a respirar o norte.

Numa paciente espera da Ordem,
onde queremos que a beleza do luar se confronte
com a vida que há no sol,
perdemo-nos, por vezes, de ventre rasgado
num horizonte despido de luz.

Quando os meus gritos, nesse horizonte,
não forem audíveis de tão submersos,
sei que posso cair na tentação de Lhe dirigir
palavras tão vivas de fé como mortas de pânico.
Só não sei se quero a surdez e a cegueira
para não perceber os manguitos nas respostas.




O sujeito poético dirige-se, neste poema, “A um Deus claro”, mas ao mesmo tempo “incerto” (antítese). Logo no título, o sujeito lírico mostra uma certa insegurança, um certo afastamento da figura de Deus, pois este Ser Divino afigura-se-lhe, por um lado “Claro”, como se existisse na realidade e estivesse sempre presente, mas, por outro, trata-se de um Deus “incerto”, ausente, como se, na realidade, não existisse. De notar a conjunção coordenativa disjuntiva “ou” que nos leva a pensar que Deus é ou parece ser, para o sujeito poético, umas vezes “claro”, outras “incerto”, ou seja, o eu lírico não tem a certeza da existência de um Deus que deveria ser fé, certeza, luz, amor... (“claro”), porque lhe atribui uma segunda característica alternativa (antitética) “incerto”, um Deus ausente, longínquo, mudo, desinteressado...

Na primeira quintilha, o sujeito poético diz-nos que as ideias crescem em nós (metáfora), em forma de preces - “como preces” - (comparação). São pedidos dirigidos ao tal Deus “claro ou incerto”, mas de forma inconsciente, pois estamos acostumados a dirigir preces a Deus, desfiando as contas de um rosário mecanicamente, sem pensar, mas acreditando que as nossas rezas, os nossos pedidos serão ouvidos por Deus e que Ele nos orientará na vida, nos ensinará o caminho certo, “nos ensina a respirar o norte” (metáfora).


Na segunda estrofe (quintilha), o sujeito lírico afirma que esperamos pacientemente que tudo na nossa vida se conserte, pois as preces, rezas, súplicas... parecem não ser ouvidas por Deus: “Numa paciente espera da Ordem”.

E que queremos nós então de Deus? Que pedidos fazemos, afinal?

“queremos que a beleza do luar se confronte / com a vida que há no sol” – aspiramos à beleza da noite iluminada pela lua e à vida que emana do sol, ou seja, queremos uma vida iluminada, sem trevas, sem escuridão. Da noite, queremos só a luz do luar; do dia, queremos “a vida que há no sol”. É que do sol não queremos apenas a sua luz, almejamos à vida que o sol tem em si. O sol é fonte de luz e de vida. Mas na “paciente espera” acabamos por nos perder, “por vezes, de ventre rasgado num horizonte despido de luz”: nessa longa espera, desesperamos, sentimo-nos perdidos e pressentimos que não mais alcançaremos a luz, ficando de ventre rasgado (metáfora), sem ânimo nem força para alcançar a luz, vendo apenas escuridão à nossa frente, um “horizonte despido de luz”.

Na última estofe, o sujeito poético que antes se incluía em “nós”, surge agora só, utilizando a primeira pessoa “eu”, destacando-se dos outros, como se se revoltasse e precisasse de agir sozinho ou porque não acredita que Deus tenha uma resposta para dar. E “quando os meus gritos (...) não forem audíveis de tão submersos”: as preces mecânicas transformam-se agora em gritos, pois não foram ouvidas por Deus, mas mesmo gritando, o sujeito lírico sente que não será ouvido, os seus gritos não são “audíveis”, pois estão sufocados, “de tão submersos” (hipérbole). O sujeito poético sente que, perante aquele silêncio de Deus, pode ele mesmo “cair na tentação de lhe dirigir palavras tão vivas de fé como mortas de pânico”, isto é, o sujeito lírico crê e não crê. Ele crê ser capaz, em situações de desespero, (“num horizonte despido de luz”), de dirigir a Deus palavras “tão vivas de fé” ou palavras “mortas de pânico”, e não crê, pois não acredita que poderá obter uma resposta. Esta sextilha termina com um desabafo sentido do sujeito poético, ele conclui, dizendo que não sabe se quer “a surdez e a cegueira / para não perceber os manguitos nas respostas”. Para ele, só há duas hipóteses: não haver qualquer resposta de Deus, silêncio total, ou então, a resposta será negativa “manguitos nas respostas” (metáfora). O sujeito poético pretende, então, dizer-nos que todas as preces feitas a Deus ficam sem resposta, e mesmo que essas preces sejam gritos sentidos, palavras cheias de fé ou mesmo “mortas de pânico” não obterão qualquer resposta.


Nilson, aqui fica a interpretação que fiz do teu poema "A um Deus claro ou incerto".

15 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Querida amiga, obrigado pela tua análise, que no meu ponto de vista é excepcional.
Um beijo.

rosa-branca disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
rosa-branca disse...

Olá Mena, embora eu já conhecesse esse poema (e o qual subscrevo)adorei voltar lê-lo. Não vou comentar, pois nada tenho a acrescentar. A sua análise diz e questiona o que eu tantas vezes(desde miuda)questionei. Parabéns pela escolha poética pois é um poeta que também adoro ler. Beijos e um feliz Natal.

Canteiro Pessoal disse...

Brilhante!

p.s.: Excelente espaço o vosso!

Abraço,
Priscila Cáliga

manuela baptista disse...

o sujeito poético

o sujeito lírico

e o sujeito interpretativo

tornaram apaixonante sujeitar-me por aqui!

um abraço aos dois


manuela

Vera Lúcia disse...

Apenas me cabe dizer que a análise foi fantástica.
Beijos aos dois.

São disse...

Parabéns a ambos.

Santo Natal, alegres Festas e feliz ano novo!

Contos da Rosa disse...

Olá Mena,

Magnífica a interpretação que destes ao poema grandioso de Nilson.

Parabéns/!

http://contosdarosa.blogspot.com

Maré Viva disse...

Excelente análise de um excelente poema.
Nilson, a tua alma foi aqui magistralmente dissecada e a tua arte poética magnificamente interpretada.
Parabéns, Mena, pela agudeza de espírito e pela clareza das palavras.

Festas Felizes.

Beijos.

Aleatoriamente disse...

Olá, vim do blog de NIlson, um amigo querido.

Nilson é um poeta maravilhoso.
Seus textos ,são ricos em conteúdos.
E a maneira que ele borda as palavras recheiam a alma.

Você fez uma interpretação muito bonita.Parabéns!

Beijinho

Claudinha ੴ disse...

Olá! Sua análise é profissional.
Nilson é um Poeta maior e me convidou a vir aqui. Gosto demais de suas letras , de seus sentimentos transformados em frases que nos tatuam a alma!

BlueShell disse...

Uma análise perfeita...um ir e pormenor em pormenor, por entre, comparações , metáforas, antíteses e hipérboles, devendando " a cerração"!Eu diria mesmo: uma análise brilhante d um magnífico poema...um poema com a qualidade inquestionável que têm todos os pomas do Nilson e que eu, na minha pequenez, nem me atrevo a "desfragmentar"!
Aqui ficou muito "clara" esse sentir do sijeito lírico relativamente ao "seu" Deus...(Fez-me lembrar Miguel Torga):

“Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.”

Miguel Torga, Câmara Ardente

Um abraço de admiração a ambos!
Bj
BShell

Silenciosamente ouvindo... disse...

Vim atrás do poema do Nilson e
cheguei ao seu blogue. Foi um prazer.
Virei com mais tempo.
Tenha um Feliz Natal.
Irene

Luma Rosa disse...

Sempre mais difícil fazer uma análise de um autor "vivo" e a sua foi perfeita!!
Parabéns pelo profissionalismo!! Beijus,

Maria Campos disse...

Olá Mena!
Agradeço ao Nilson, poder tê-la conhecido.
Interpretação profissional e pormenorizada, de um poema profundo e que me encantou, como tantos outros que tenho lido e absorvido, de Nilson.
Entrarei para o seu grupo de seguidores.
Sou professora, mas não de portuês. No entanto, gosto tanto mas tanto das palavras que, agarro com paixão, todas as que me deliciam.
Parabéns!