As letras do meu afecto
Por acordo com a direcção do Diário do Alentejo,
as crónicas que a partir de agora partilharei nestas páginas não seguem o novo
Acordo Ortográfico. Não por caturrice cinquentenária ou porque seja avesso à
inovação, mas muito simplesmente porque este (des)Acordo é desonesto nos
princípios que proclama, inútil nos fins a que se propõe e criminoso na forma
como pretende alcançá-los.
Destina-se a coisa a unificar o que não pode nem
deve ser unificado, e o facto de não conseguir fazê-lo é a razão primeira da
sua inutilidade. Com ou sem o AO, um facto em
Portugal continua a ser um fato no Brasil. E o fato que eu use
não há-de ser diferente do terno que vestem os meus amigos do Rio e de
São Paulo. Tal como, se lá for, não duvido que continuarei a ter boa recepção.
Mas se os receber em minha casa, por vontade do AO não poderei proporcionar-lhes mais do que uma modesta receção.
De disparate em disparate,
nem o nome dos meses escapa à fúria alegadamente normalizadora. Querem com isto
que Abril passe a ser apenas abril, haja vinho novo em setembro e o Natal seja
celebrado em dezembro. E qual é a utilidade de tal gesto?
Não é por os ingleses
subirem de lift e os americanos de elevator que ambos deixam de
chegar ao mesmo destino. Os espanhóis viajam de coche e os cubanos andam
de carro, eventualmente da mesma marca, mas com certeza de anos
diferentes. E entendem-se muito bem.
As palavras não são
meros conjuntos de letras e fonemas, são também a memória
que trazem dentro
delas.
O AO não serve porque não presta, e não presta porque não faz
sentido. A Língua defende-se preservando a sua diversidade, porque ela reflecte
a história dos povos que a falam. As palavras não são meros conjuntos de letras
e fonemas, são também a memória que trazem dentro delas. Memória delas e das
coisas que designam, e das mulheres e dos homens que a falam. Não basta, pois,
conhecer as palavras todas, é preciso saber como se usam.
O AO cofunde muito mais do que simplifica, por exemplo ao promover
o uso facultativo de uma ou de outra variante. Mas ninguém perguntou aos espectadores
se queriam ser transformados em espetadores. E é o que se vê: tolejar
converteu-se num desporto alternativo, a comunicação tornou-se mais difícil e a
Língua ficará seriamente ferida se a prossecução do crime não for interrompida.
E ainda pode sê-lo: uma iniciativa legislativa de cidadãos está
presentemente em curso e as hipóteses de ser bem sucedida dependem apenas da
vontade de todos nós.
As línguas têm o seu
próprio tempo, as palavras crescem, vivem, e às vezes morrem, mas isso deve
acontecer no respeito pelo ciclo natural do desenvolvimento humano. Uma língua
amputada artificialmente e sem rigor nem sabedoria torna os povos que a usam
inevitavelmente mais pobres, porque menos cultos. E um povo menos culto é um
povo menos livre.
No
apontamento sobre os lugares de Zeca Afonso que aqui publiquei há duas semanas,
o AO retirou o c da palavra afecto.
E eu gosto dele, entre outras razões porque me ajuda a abrir a vogal anterior.
E porque aquele c é parte do código genético daquela palavra, e não há
razão para que seja eliminado. No que depender de mim, farei tudo para poder
continuar a usar todas as letras do meu afecto.
Viriato Teles, in Diário do Alentejo